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Paulistices, cultura geral e outras curiosidades

Viaduto do Chá, 120 anos

Por Edison Veiga
Atualização:

O Viaduto do Chá acaba de completar 120 anos. Símbolo do centro de São Paulo, ele foi homenageado por artistas e escritores, a pedido do Estado. O resultado pode ser conferido neste post e na edição impressa de hoje do Estadão.

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SiedschlagUm poema de Fabrício Carpinejar*

Você ouve com as pálpebras. As pálpebras são as unhas dos seus olhos, pintadas de azul, laranja, preto.

Marcamos de nos ver no alto do Teatro Municipal, a meio caminho entre a comédia e a ópera.

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Seu rosto tremia suavemente com o ritmo do Viaduto do Chá. A pressão sanguínea dos passos na pele, a vibração envenenando.

Os passantes reverberavam em seu corpo sestroso, em seus seios fartos, em suas ancas deliciosas.

A cidade ondulava no vestido. Você segurava na barra da grade e oferecia o pescoço à mordida do vento.

Belvedere: como se houvesse um mar, como se houvesse uma serra.

Escorada no parapeito, seus olhos fecharam como um longo beijo na boca do precipício

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de São Paulo.

Assim que eu lhe vi pela primeira vez, fez cena de ciúme com as pedras.

Todo viaduto é um amante apressando o abraço.

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* O poeta e cronista Fabrício Carpinejar é autor de Cinco Marias, entre outros.

Pequena chama pequena demaisUm conto de Jeosafá Fernandez Gonçalves*

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Dona Fiametta, queria agradecer ter-me escolhido sua estagiária. Então, agradeça e, se puder, me deixe. Não posso, obrigada, o que tanto faz nessa janela? Então não queria só agradecer. Na verdade, não. E por que a curiosidade tardia, afinal, não é de hoje que faz as vezes de minha secretária, quanto tempo faz mesmo? Faz tempo, levando-se em consideração minha escala "micro". Bem, a minha é "macro"... o que faço? O que todos fazem, observam, não é para isso que servem as janelas? Sim, porém, sempre a esta hora, digo, à hora do almoço? O que há de divertido no viaduto do Chá sempre a essa hora que a faz perder a vontade de comer? O viaduto é grande demais, Dina. Fiquei na mesma. Conte as colunatas e encontre a que seria a central. Aquela? Sim. Não vejo nada de interessante. Agora não há, mas havia. Quando? Durante um tempo que sua pouca idade teria dificuldade de mensurar. Posso tentar. Vim trabalhar neste escritório mais ou menos na sua idade, para fazer mais ou menos o que você faz agora. Secretária? Isso, secretária do proprietário. Então nem sempre foi a dona? Não. Antes de comprar dos herdeiros o negócio quase falido e pô-lo novamente de pé, fui secretária do proprietário já velho, que durou bastante, mas, enfim, morreu, depois, do filho, que durou mais ou menos, por causa do alcoolismo, mas que também morreu. É um tempo longo para minha escala. Isso é você quem deduz a partir de sua idade, para mim, esse tempo é um só, macro, pelo qual transito sem transtornos. A partir dessa janela? Ahá, por isso a contratei, é esperta! O que havia nesse "durante" que minha pouca idade de escala micro não alcança? Moro desde sempre na praça Roosevelt. Sei. Vou e volto da casa para o trabalho e do trabalho para casa a pé todos os dias. Sei. Agora, não, mas nesse durante dentro de meus olhos, dentro do meu ser, que você pode imaginar, almoçava diariamente em casa, para tanto, cruzando o viaduto sempre pelo mesmo lado, tantas vezes isso fiz que, enfim, observei um moço a fazer o caminho contrário invariavelmente no mesmo horário. Todos os dias? Todos, inclusive quando chovia, inclusive quando tempestades de verão arrasavam a cidade com inundações, raios, quedas de energia, árvores e o faziam dobra-se sob o guarda-chuva virado para cima pelo vento. E o que o fazia exercer essa persistência e pontualidade de monomaníaco? Descobri, ele adorava almoçar no restaurante Guanabara, está vendo, é ali na esquina da São João com o Vale do Anhangabaú, na época era um trânsito infernal. Um dia o segui pelo trajeto todo, almocei em uma mesa de canto, recuada, e o vi só, o nó da gravata solto, os óculos apoiados a um canto, uma caderneta de anotações ao lado do prato, ele a rabiscá-la caprichosamente entre uma porção e outra de arroz levada à boca. Seguiu-o muito, digo, muitas vezes? Não interessa. Tive uma ideia: cronometrar o exato momento em que ele passava por aquela colunata. Entendi o papel dessa colunata. Não entendeu, não, mas vai entender logo. Tanto faz. Ele não era tão pontual, às vezes se atrasava minutos, então, elaborei uma estratégia: à hora aproximada, aguardava-o à distância, na cabeceira do viaduto, de maneira a cruzarmos nossos olhares nas imediações desse ponto. Era bonito? Sim. Era charmoso? Sim. Era elegante? Sim. Era casado? Não. Porém, eu era. Nunca conversaram? Não, ou melhor, com palavras, não. Falta de atitude. Esse durante foi deitando nele cabelos brancos, engrossando-lhe as lentes dos óculos e reduzindo o vigor das caminhadas. Ou ele foi reduzindo a pressa para, enfim, vocês... enfim... "vocês"? O durante que gretou seu rosto com lindas rugas me fez mãe e, depois, avó, e depois viúva. E daí? Daí, a partir de quando nasceu meu primeiro filho, vim para esta janela, dela, o acompanhei dia após dia, ano após ano, a cruzar o viaduto rumo ao Guanabara, cada vez mais... Aflito? Isso. Esperava encontrá-la. Admito, depois, mais reticente, a zanzar pelo passeio do viaduto, pura hesitação entre prosseguir e retornar. Ansiava que aparecesse. Também admito, por fim, deu de parar naquela colunata, mal apoiado nela, sem jamais novamente atravessar o viaduto para este lado, a passar o horário todo do almoço a fumar e a apagar bitucas de cigarro numa latinha que levava para acondicioná-las. Quanto durou isso? O tempo do calendário é enganador, seja qual for a escala, foi um durante que o tornou mais paciente, porém mais lento, menos ansioso no consumo do tabaco, porém, mais observador do Vale do Anhangabaú do que dos rostos das pessoas. Em meio às quais certamente esperava encontrar o seu. Mas agora não há nada lá. Só a colunata, há mais tempo do que você pode imaginar. Engana-se, posso imaginá-lo, e já o estou mesmo vendo ali, em seus olhos de quase cego e seus macios cabelos de algodão, a espera do toque de dedos.

* O escritor Jeosafá Fernandez Gonçalves é autor da série de livros Era Uma Vez no Meu Bairro.

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