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Percurso sobre rios

<B>CRÔNICA</b>

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Por Edison Veiga
Atualização:

 Foto: Epitácio Pessoa/ Estadão

Três caras se engalfinham na saída do Metrô São Bento oferecendo garrafinha d'água, dois reais, dois reais, dois reais, tá na mão, geladinha. Multidão afoita, atropelante. Calor. Trinta e um graus, mas parecem quarenta. Muvuca é muvuca, centro que não para, não tem crise que acalme a Vinte e Cinco.

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Filho nos ombros, cavalinho, papai, cavalinho, papai, atravesso. Um ambulante vende brinquedos chineses - ou taiwaneses? - por quinze reais. Soltam bolhas de sabão. A pilha, musiquinha irritante, intermitente, não compro.

Desço a Ladeira. Porto Geral. Porque na região o Tamanduateí, quando era um rio e não uma canaleta fedida, formava uma curva. Eram sete curvas, dizem cartografias antigas e os livros do professor Benedito Lima de Toledo. Nesta, especificamente, havia mesmo um porto. E ali aportavam, portanto, os barqueiros com suas mercadorias, levando e trazendo coisas para o Mercado dos Caipiras e o Mercado Grande, ou Mercado Velho.

Caipira sou eu, aliás. E estou começando a ficar velho.

Fico imaginando que onde há a inundação de gente hoje, antes a inundação era navegável. Várzea de rio. Curva de rio. Curva de rio é pejorativo, né? Onde tudo para. Hoje ninguém para. Hoje tem camelôs. Tem sacoleiros. Tem mascates. Não, não, mascates já havia antes - correção mental, calor quente insofismável, com o perdão do pleonasmo vicioso.

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Penso que preciso de um Dicionário Analógico da Língua Portuguesa, aquele que o Chico Buarque gosta e propagandeia. Mas aqui não vou achar. Lembro que preciso de um cabo novo para o HD externo, mas também não é aqui, não, eletrônico é um pouco mais pra cima, ali na Santa Ifigênia, se subir em vez de descer a Ladeira, passar pelo Largo de São Bento, dar uma olhadela na fachada do Mosteiro, seguir adiante, a partir do viaduto talvez já tenha algum camelô vendendo cabo. Preciso também de um alicate novo para a caixa de ferramentas, aquele de ponta fina para eu brincar melhor de ser eletricista de fim de semana. Tem a Florêncio de Abreu, poucas quadras daqui também, vou achar, precinho bom, certeza.

A Florêncio ainda é a rua das ferramentas, certo? Ou terá mudado, como a Teodoro Sampaio cada vez menos tem instrumentos musicais? Como a Pedroso de Moraes com cada vez menos sebos? A Consolação ainda é a rua dos lustres? Quem inventou isso das ruas temáticas, comerciantes concorrentes divisando paredes? Será que se encontram depois do expediente? Combinam preços, acertam fornecedores, apostam quem vai vender mais, de repente até têm estoques unificados para facilitar tudo, espaço é tão caro em São Paulo, coisa mais cara nesta cidade é o metro quadrado, daqui a pouco até o ar vai precisar pagar IPTU só por existir, e vamos todos ter de pagar também taxa por ocupar espaço, apenas - receio que já pagamos.

Estou na Ladeira. Não, não vou subir. Não vou comprar dicionário hoje, nem cabo, nem nada. Que ideia foi essa de alicate? Faz tempo que nem tenho tempo para brincar de eletricista. Preciso mesmo é de uma cola nova, o moleque sempre quebra os brinquedos e tem na estante de casa meio que um estacionamento de carrinhos quebrados, parece uma oficina mecânica. Meu medo é que se torne um cemitério de automóveis em miniatura. Vou consertar. Preciso de uma cola nova, onde vende, cê tem cola aí, moço? Cola boa, que aguente, que grude plástico. Tem? Quanto?

Vou descer três quarteirões, ou dois? É dobrar à esquerda, caminhar uns oitenta metros, pronto. Aquele árabe, sempre cheio. As pessoas se engalfinham quase nos balcões, mas no fundo tem mesas. É esperar na fila e vai valer a pena. Esfirra boa. Quibe cru. Cerveja gelada. Preciso de um Dicionário Analógico. Era aqui que passava o Tamanduateí? Quem foi que inventou de canalizar o rio?

Gosto das toponímias paulistanas. Essa mistura de tupi com italiano, essa pose de jesuíta com imigrante. Hidrônimo, no caso. Tamanduateí. Rio dos tamanduás verdadeiros. Rios dos tamanduás-bandeiras - os outros não são verdadeiros? Nasce na Serra do Mar. Morre no Tietê. Triste morte. Tietê, junção dos termos ti, água, e eté, verdadeiro. Gostavam de batizar verdadeiras as coisas, esses pioneiros de nossa terra.

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