PUBLICIDADE

Foto do(a) blog

Espaços públicos, caminhadas e urbanidade.

Um dia. Seis meios de transporte. Seis visões da cidade.

Por Mauro Calliari
Atualização:
 Foto: Estadão

Outro dia, precisei fazer várias coisas, em horários e locais diferentes. Acabei usando vários meios de transporte: bicicleta, ônibus, carro, taxi, metrô e, claro o pé.

PUBLICIDADE

Surpreendi-me ao descobrir que meu estado de espírito era totalmente influenciado por cada jeito de me movimentar. Será que somos pessoas diferentes dependendo de como andamos por aí?

De ônibus, sou ansioso e e a cidade é uma sucessão de pontos sem ligação entre si.

A espera pelo ônibus traz sempre uma insegurança. Será que vem? Quando vem? Estender o braço, torcer para o motorista parar, entrar no carro lotado. Segurar firme quando a máquina barulhenta acelera ou freia de repente. Sentar sem encostar demais no vizinho, na vizinha, olhar para a rua através das frestas. Apertar o botãozinho quando chega a hora de descer. Fingir que não está ouvindo a conversa dos vizinhos. Chego tonto ao destino e desvio de um carro que sai de uma garagem...

... de carro, sou hermético e a cidade é um trajeto a ser vencido.

Publicidade

Sinto-me poderoso até o fluxo de carros parar. Ouço as notícias no rádio. Há um acidente em algum lugar, mas a repórter pula a parte que não interessa - alguém foi atropelado - e concentra-se no que interessa - quantos quilômetros de congestionamento? O sinal fica amarelo, alguém acelera e quase atropela um pedestre na faixa. Buzino para o outro motorista e me dou conta de que a buzina é altíssima e que acabei assustando o próprio pedestre. Procuro inutilmente uma vaga na zona azul, há caçambas, motos e carros com gente dentro, nenhum com cartão. Chego ansioso ao destino e vejo uma bicicleta amarrada numa grade...

...de bicicleta, sou destemido e a cidade é uma faixa vermelha a ser seguida.

As primeiras pedaladas já trazem a boa sensação do vento. Sinto músculos fazendo força nas pequenas subidas. Uma pequena euforia aparece a cada pedalada. Mas a bicicleta também tem regras. É preciso olhar para não sair do rumo da faixa e não dá para distrair, pois há pedestres e sinais e outros ciclistas e, claro, os carros. Há um trecho em que desço e empurro a bicicleta na calçada. Estaciono na calçada mesmo, amarro a bicicleta numa grade e vou carregando o capacete até a reunião. Chego orgulhoso ao destino e olho com desdém a fila de taxis parados no ponto...

... de taxi, sou um personagem e a cidade é uma ficção.

Deixo as grandes decisões de caminho para o motorista e me concentro em ser um passageiro distinto. Sinto que deveria estar de paletó, com cinco celulares e problemas grandes para resolver. Mas não estou de paletó, não tenho cinco celulares e decido que os grandes problemas estão muito além do meu alcance. Então, olho para as calçadas. Vejo lojas e pessoas que nunca veria se estivesse dirigindo. Mas elas passam rápido. O que não passa nunca é a conversa, inexorável, sobre os temas do momento: o limite de 50km/hora, as faixas de bicicleta, o Uber, zzzz. Deixo o sono me invadir, enquanto murmuro monossílabos. Chego anestesiado ao destino e dou a volta numa fila de gente esperando para entrar no metrô...

Publicidade

... de metrô, sou resignado e a cidade é uma lembrança.

CONTiNUA APÓS PUBLICIDADE

Desço as muitas escadas, já em fila. Lado direito, parado, lado esquerdo, andando. Na plataforma, lotada, decido não brigar com os que furam a fila, ignorando a setinha pintada no chão. No trem, desvio-me dos que ficam na porta, esperando descer em alguma estação que ainda virá. As faces estão voltadas para as telas dos celulares, mas também há conversas animadas, colegas de uma aula de contabilidade, amigas que comentam um caso sem fim. O cheiro de uma sopa instantânea com notas de glutamato monossódico quase causa náusea. Na TV do vagão, a lista dos 7 mais estranhos cortes de cabelos de astros do rock ingleses. A velocidade espanta. É bom sair da estação, subir, subir, subir e ver que há ar na superfície. Chego aliviado ao destino e invejo o pedestre ao meu lado...

... a pé, sou eu mesmo e a cidade é minha.

Ando na minha velocidade. Sinto o ar, vejo as lojas, vejo os rostos das pessoas. Paro numa vitrine e compro um guarda-chuva. Desvio de alguns buracos, não se pode ser desatento! Como um situacionista francês, faço um desvio, perco tempo útil para transformá-lo em tempo lúdico. Sou interrompido pela buzina alta de um carro. Vejo ônibus, bicicletas, carros, sinais do metrô. Decido entrar numa padaria e pedir um café. Chego inteiro e sereno ao meu destino.

Foto Pessoas com guarda-chuva: M.Calliari

Publicidade

Veja também: Leia também: como melhorar a andabilidade em São Paulo

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.