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Espaços públicos, caminhadas e urbanidade.

Sobre cidadãos e idiotas

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Por Mauro Calliari
Atualização:

O episódio do casal que confrontou o fiscal na Barra da Tijuca gerou enorme repercussão.

 

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Para quem não viu o vídeo, trata-se de um fiscal que aborda um homem que estava num bar lotado. Ao ver o acompanhante ser chamado de "cidadão", a mulher reage prontamente: - "Cidadão não. Engenheiro civil, formado. Melhor do que você."

 

Há várias nuances nessa história. Alguns têm explorado o assunto sob o ponto de vista de classe, outros de raça e outros ainda de segregação geográfica.

 

O que mais me chamou atenção, porém, foi a questão semântica. Afinal, o que acendeu a reação foi uma palavra: "cidadão".

 

Por que que alguém se indignaria em ser chamado de "cidadão"?

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Intrigado, fui atrás do Houaiss. "Cidadão" é quem se acha no gozo de direitos e no compromisso de deveres que lhe permitem participar da vida política, e portanto, também econômica e cultural da sociedade.

 

Humm... ser considerado um cidadão deveria ser bom, não?

Deixo o dicionário e os usos correntes de lado e peço ajuda ao Lewis Mumford, sociólogo, historiador e filósofo, que escreveu dois livros monumentais sobre a história das cidades. Ele me manda até a Grécia antiga, onde se estruturou a democracia.

 

Na Atenas do século V a.C, cidadãos não eram todos os habitantes. Só os homens livres, o que excluía os estrangeiros, escravos e as mulheres. Por mais restritivo que isso soe hoje em dia, esse primeiro experimento de democracia direta garantia que todos os cidadãos teriam chance de participar no sistema político. Os cidadãos faziam rodízio nas diversas instâncias, e alguns cargos eram até sorteados.

 

Esse conjunto de cidadãos se agrupava em torno da cidade física, mas também em torno de um conceito - a pólis. Pois a pólis está na raiz de outra palavra que nos espreita diariamente: a política. Além de ser a ciência da organização e administração do estado, um dos seus sentidos é justamente o "relativo à cidadania". A democracia, portanto, vinha com um custo aos cidadãos: o de participar da vida pública, através da política.

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Ser cidadão pressupõe a participação na vida pública.

 

E isso nos leva a uma última definição, que também vem do grego, o idiota.

 

O idiota, originalmente, era aquele que fazia o seu ofício privado. Alguns estudiosos, porém, relacionam seu uso ao momento histórico de Atenas, estabelecendo um contraste entre o privado e o público. Assim, o idiota seria a pessoa que está tão preocupada com seu ofício e sua vida privada que desiste de participar da vida política de sua cidade.

 

Talvez essa seja a conclusão da história: eu não quero ser chamado de cidadão não só porque isso me obriga a participar da vida pública, mas principalmente porque isso me iguala a todos os outros que vivem na mesma cidade. Quando a vida pública se resume a tomar um chopp sem máscara em meio aos amigos, abandono a posição de cidadão e me concentro em meu ofício.

 

Não querer se ocupar das responsabilidades que vêm com a liberdade é exatamente isso: o ato de alguém que não se importa com o resto das coisas ao seu redor. Um idiota, na definição grega.

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Para alguém que se recusa a participar da vida pública, o que seria uma constatação elogiosa - "reconheço você como um igual" - torna-se uma ofensa e justifica uma reação destemperada. Daí, talvez o fato de a expressão ser usada, segundo meus amigos cariocas, como um certo deboche pelas autoridades do Rio de Janeiro, ao abordar as pessoas.

 

O insulto, que já teria ficado pelo ar, pela grosseria, acabou também se voltando contra os próprios autores pela inexatidão. O fiscal na verdade é Flávio Graça, superintendente de inovação, pesquisa e educação da Vigilância Sanitária da Prefeitura do Rio de Janeiro, mestre e doutor pela Universidade Federal Rural do Rio (UFRRJ) em ciências e medicina veterinária. Se ele não fosse nada disso, não faria diferença nenhuma, claro, mas quem sabe a ironia ajude os detratores a pensar.

 

Sim, pegou mal para os esquentadinhos, mas quero crer que a vergonha baste como uma expiação do erro. A mulher já foi até demitida e ambos estão expostos à tradicional execração nas redes sociais, onde todos filmam todos e todos têm opinião sobre tudo.

 

Quem sabe, o episódio não seria menos uma ocasião de comentar os deslizes alheios e mais um convite a participar futuramente da vida pública da cidade onde todos nós vivemos?

 

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