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O Uber 'silencioso'. Por que uma pessoa adulta paga para pedir silêncio se ela pode fazer isso ao vivo?

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Por Mauro Calliari
Atualização:
 

De um lado, motoristas que são instados a se comportar como máquinas. De outro, pessoas que não sabem conversar com humanos. 

 

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Na semana passada, ficamos sabendo que o Uber vai lançar uma função para os passageiros que não querem conversa com o motorista enquanto são levados pela cidade.

Chamada de Uber Comfort, a novidade permite que o passageiro pague um pouco a mais para garantir seu silêncio e para regular de antemão a temperatura do ar condicionado.

Mas, por que alguém vai pagar a mais para pedir silêncio se ele pode fazer isso ao vivo?

Na verdade, a relação entre passageiros e motoristas de aplicativos já anda estranha há tempos.

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Quantas estrelas você tem? 

 

Tudo começou quando aceitamos um sistema que nos incentiva a dar uma nota ao motorista a cada viagem e vice-versa.

Claro, há sempre as pessoas de má índole e o sistema poderia simplesmente ter um campo para reportar condutas inadequadas e tirar esses maus motoristas e passageiros incivilizados de circulação.

Porém, há quem puna o motorista por falar demais, por não oferecer balinha, por parar cinco metros a frente do endereço indicado e por tocar pagode, como se não fosse possível resolver isso numa conversa civilizada.

Por outro lado, e isso parece ser pior ainda, também os passageiros são avaliados.

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Será que eu posso pedir para o motorista abaixar o rádio que toca pagode furiosamente sem que isso acabe com minha reputação de bom passageiro? Posso atender a uma ligação ou devo ficar atento à conversa? Devo incomodá-lo enquanto ele olha para a telinha e esquece da rua? E se eu precisar pedir para parar numa farmácia, isso vai arruinar minha avaliação?

O episódio de Black Mirror "Nosedive", em que a avaliação das redes sociais determina se alguém pode usar um serviço ou entrar num clube, já começou.

 

O futuro dos carros sem pessoas

 

Talvez esse seja mesmo o primeiro passo em direção ao futuro: os carros sem motorista, que não têm os inconvenientes dos humanos. Ele já estão rodando por aí, em testes nos Estados Unidos, Europa, China e Japão. Nos Jogos Olímpicos de Tóquio, carros sem motoristas vão levar  atletas até as competições e visitantes vão interagir com robôs que falam várias línguas.

Em vez de conhecer uma pessoa japonesa, de carne e osso, com sotaque, maquiagem, história e sorrisos, o turista vai conversar com uma traquitana falante. O problema é que talvez alguns achem isso muito melhor.

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Pessoas que delegam a resolução de problemas ao aplicativo talvez não aprendam nunca a negociar

 

Existe uma pequena doença implícita nessa mudança: a dificuldade crescente das pessoas de conviver com  diferente, a diversidade e as situações inesperadas que o convívio traz.

O sociólogo Richard Sennett definiu a cidade como um lugar onde pessoas diferentes convivem cotidianamente.

Essa convivência é difícil mas essencial para desenvolvermos nossa própria identidade.

No momento em que saímos de casa, aprendemos a nos orientar na cidade, a se relacionar com lojistas, a trocar impressões com alguém no ponto de ônibus, a detectar situações de perigo, a encontrar pessoas interessantes e repartir histórias.

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Ora, no momento em que não precisamos mais falar com ninguém, talvez nossa própria identidade esteja ameaçada. Seremos como crianças que não sabem negociar ou têm medo da complexidade e do contato.

É claro que existem dias em que a gente não quer conversar. Mas mesmo nesses dias, se você entra num taxi, ou no barbeiro, na fisioterapia, em até em casa, com a família, vai ter que ser capaz de argumentar com uma pessoa e explicar que você está cansado ou que teve um dia difícil pedir um pouco de silêncio.

Eu adoro cortar o cabelo sem falar com ninguém, mas não trocaria nunca o barbeiro por um robô mãos-de-tesoura japonês. É do jogo da convivência a gente aprender a lidar com gente diferente. Quando pagamos para uma pessoa ficar quieta (sim, o Uber Comfort vai custar 20% a mais), estamos deixando de aprender a conviver e a conversar com nossos próprios argumentos.

E, por outro lado, cadê as surpresas? Quem disse que uma conversa inesperada e inicialmente indesejada não pode trazer um prazer inesperado?

Sim, dá trabalho conversar com outras pessoas, explicar, negociar, contornar, hesitar, errar e acertar. Mas essa é a essência dos contatos fortuitos e uma das bases da convivência nas cidades.

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Passar por cima das idiossincrasias dos outros pode ser apenas um caminho para começarmos a preferir a companhia de um celular à de um ser humano.

 

 

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