A cada 30 quilômetros, irrompe no rádio uma nova estação, cada uma de uma cidade diferente. A recepção é ruim, o som vem atrapalhado, cheio de estática. Mas a conversa é imperdível e fascinante.
Os apresentadores são as estrelas dos programas. Eles conversam intimamente com os ouvintes, que retribuem com mensagens no whatsapp e pedidos de música: “ dedico essa música à minha tia, meu irmãozinho, meu paizinho que já me deixou, a todo o pessoal da rádio e aos meus colegas aqui do trabalho”.
O apresentador da rádio de Catanduva recebe as mensagens com carinho e reage com uma insuspeita religiosidade: “Ah, meu Deus do Céu, que maravilha essa música que você pediu” ou “Minha Nossa Senhora, tá muito calor mesmo!”.
Em Matão, o locutor chega a ter uma gravação de risada para rir de suas próprias piadas, que misturam uma ingenuidade de Mazzaropi – “Minha mãezinha me disse para não ser locutor de rádio, porque o salário é muito baixo” à ousadia dos country boys – “hoje é domingo, não vai sobrar latinha de cerveja cheia hoje”.
Para preencher tantas horas de conversa, o pessoal apela ao almanaque. Fico sabendo que dia 19 de janeiro é o dia do cabeleireiro. A dupla de apresentadores de Taquaritinga louva o profissional que nos ‘ajuda a melhorar a auto-estima’. Concordo, claro. E quem não gosta de sair com o cabelo aparado, se sentindo melhor?
A música não deixa ninguém se enganar: estamos na terra do sertanejo, que domina quase todas as estações do dial, a qualquer horário. É o tipo de música que eu quase nunca ouço, então procurei acompanhar com atenção às evoluções dos cowboys (muitos) e cowgirls (poucas).
Percebo dois padrões de letras de músicas.
No primeiro tipo, há cervejas, mulheres e alegria. O raciocínio é algo como “bebo, então posso ter uma mulher” ou o inverso “tenho uma mulher ao meu lado, então, preciso de uma cerveja”. Um dos cantores sugere que a mulher já venha tirando a roupa e “não aceito um não como resposta”. Até a latinha de cerveja é objeto de desejo, como nos lembra o simpático cantor que ouvi na altura de Araraquara: “quero ser essa latinha de cerveja para encostar na sua boca”.
Outro padrão de letras é o da tristeza e aqui já aparecem algumas cantoras mulheres. Ele ou ela foi trocado por alguém. E bebe para esquecer, ou canta para lembrar. Nessas letras, há um certo prazer mórbido em contar os detalhes do fim do relacionamento. Em Rio Claro, ouço abismado essa pérola: “no jantar de despedida, fomos num restaurante caro, pedimos ceviche de entrada, tomamos vinho chileno, mas nossa história acabou ali”. Gastronomia e dor de cotovelo, memorável.
Como uma quebra nessa intensidade toda, há alguns programas que saúdam a ‘música antiga’: o sertanejo raiz, a moda de viola. Ali, ainda se saúda o sitiozinho, o boizinho, o riachinho e a porteira. Como ouvinte desacostumado a tanta cerveja em letras de música que sou, consigo um alívio nostálgico durante alguns quilômetros enquanto Milionário e Zé Rico louvam a zona rural que não existe mais, do caipira simples e feliz, que talvez tivesse um burrico e não uma Ford Ranger.
Uma atração à parte são as propagandas. Em tempos de grandes redes de franquias, é um alento ouvir o anúncio das lojas locais, como o da “casa de carnes Estrela do Sul” ou da lojas de carros dos irmãos Larry e Luan, logo ao lado hortifruti Repolhão”. Vários anúncios trazem um número de telefone, como se os clientes precisassem falar com Larry ou Luan antes de encher a despensa.
As rádios religiosas também estão lá, disputando ouvintes. Ao contrário da louvação à cerveja, aqui, busca-se louvar a cura. Os que bebiam ou se drogavam ou eram infiéis mudam totalmente de comportamento ao descobrir a palavra. Um empresário conta com orgulho que se converteu e conseguiu comprar um apartamento com quatro quartos e cinco garagens para guardar seus carros, estimulando outros a fazerem o mesmo.
A rádio AM também traz notícias. Como em rádios ‘nacionais’, os locutores falam da chegada da vacina contra a Covid e do resultado do jogo do Corinthians e Palmeiras. Mas o tom não tem nada de imparcial e formal. Aqui, até a previsão de tempo é personalizada. Como na rádio de Araçatuba, em que, o locutor, indiferente aos percentuais de possibilidade de precipitação conta que choveu no seu bairro a noite inteira mas que “hoje essa chuva tinha que dar um descanso”. E quem disse que isso não é previsão?
O locutor de Ribeirão Preto comenta, consternado, a morte de um homem que caiu do telhado ao fazer um conserto. A notícia, que seria uma notinha em outro lugar, ganha contornos pessoais. Ficamos sabendo o nome e a idade do homem. Também somos informados que ele fazia esse tipo de serviço há mais de trinta anos e era muito querido no bairro tal. Não era um número. Era um homem, com história, nome e proximidade.
O programa que mais me cativou, porém, foi a entrevista do secretário de turismo da cidade de Monte Alto, que durou a enormidade de quase 40 minutos e que eu ouvi inteirinha, ignorando a vacina, as intrigas de Brasília, as fofocas de Washington.
O jovem secretário está animado com seu trabalho e tem memória incrível, citando o valor exato empenhado em cada obra e o número da respectiva licitação, como se recitasse um ponto numa sabatina. Aprendi que, além de turismo ecológico e trilhas, Monte Alto tem um importante museu de paleontologia, que vai abrir quando a pandemia arrefecer.
A viagem vai terminando. Estou quase em São Paulo quando sintonizo uma rádio da capital que faz a irresistível enquete: “O que você faz para se acalmar?”. Há uma sucessão de ouvintes mulheres que dão suas dicas: ligar o ventilador no mínimo para parecer que é o barulho do mar, confeccionar máscaras para doação, fazer artesanato, meditar e escrever poesia. Nenhum homem se manifesta. Talvez eles não ouçam rádio à tarde. Talvez eles não tenham nada a dizer sobre a calma.
Chego a São Paulo diferente do que saí. Apesar de aturdido por tantas horas ao lado do rádio, sinto-me estranhamente próximo de cidades que nem conheço. É como se durante algumas horas, tivesse tido companhia de gente que nunca vi, em busca de conforto em momentos de solidão ou tédio. Saúdo essas pessoas que me fizeram companhia e prometo mentalmente conhecer o museu de paleontologia de Monte Alto e seu competente secretário de turismo um dia.