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Espaços públicos, caminhadas e urbanidade.

Em busca do sentido dos feriados amontoados durante a pandemia

Por Mauro Calliari
Atualização:

Cartaz de 1932. Foto: Reprodução

 

O mega-feriado chegou e passou. De uma tacada só, celebramos, ou deveríamos ter celebrado, Corpus Christi, Consciência Negra, e o 9 de Julho.

 

Diante do exotismo de ver datas do calendário futuro sendo empilhadas em sucessão para gerar dias com menos movimento nas ruas, resolvi que ia tentar encontrar algum sentido nesses dias todos.

 

O que estamos celebrando afinal? E por que precisamos de datas oficiais para nos lembrar de coisas que supostamente são importantes?

 

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Quarta, 20 de maio. Corpus Christi, comemorado normalmente em 11 de junho.

 

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Aprendi que Corpus Christi vem do século XIII, quando o papa Urbano IV instituiu que se desse destaque ao mistério da eucaristia. Não sei se entendi direito, mas é como decidir dar mais pompa a uma cerimônia que poucos entendiam.  O ofício, cantado até hoje foi composto por Tomás de Aquino. Tem uma letra em português, mas em latim me pareceu ainda mais bonito: Docti sacris institutis, Panem, vinum in salutis Consecramus hostiam.

 

O festejo e a procissão duraram esses séculos todos. Roberto Pompeu de Toledo, em São Paulo, capital da solidão, conta que, até o século XIX, a vida pública girava em torno das datas da igreja e Corpus Christi era um momento em que a cidade habitualmente sonolenta vinha inteira às ruas.

 

Não há mais a procissão generalizada, mas no ano passado, caminhando pelo bairro de Santo Amaro topei sem querer com aqueles lindos tapetes coloridos de serragem e papel, pelo chão de uma igreja. Imaginar o trabalho das pessoas para produzir algo tão bonito e passageiro, alegrou a caminhada e coloriu um pouco o dia cinza.

 

Santuário Nossa Senhora de Fátima, Corpus Christi de 2019. Foto: Mauro Calliari

 

Quinta, 21 de maio. Dia da Consciência Negra, comemorado normalmente em 20 de novembro.

 

O dia da Consciência Negra é comemorado há poucos anos. A lei municipal, de 2011, mostra como é recente a preocupação em encontrar um dia para discutir desigualdade. A data corresponde ao dia em que Zumbi dos Palmares teria sido morto, em 1695.

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No livro A cidade no Brasil, Antonio Risério detalha que o quilombo dos Palmares, na verdade, eram nove arraiais, com nomes sonoros, como Andalaquituche, Dambrabanga ou Serinhaém. Macaco, o principal era um povoado de milhares de pessoas, murado, com quatro ruas ao redor de um largo, com mercado e até capela. Havia escravos dentro do próprio quilombo e comerciava-se furtivamente com as cidades próximas.

 

A região da Serra da Barriga, em Alagoas, acolhia o Quilombo dos Palmares, hoje patrimônio cultural do Mercosul. Foto: EBC/Agência Alagoas

 

No portentoso Brasil, uma biografia, Lilia Schwarcz e Heloisa Starling, contam que Zumbi se opôs à tentativa de acordo entre Ganga Zumba e o governo, em que os escravos não nascidos no quilombo seriam entregues, em troca da liberdade dos outros. Ganga Zumba é assassinado e Zumbi comanda a luta contra as autoridades portuguesas até sua morte, como a deixar claro que a liberdade de uns não viria ao custo da rendição de outros.

 

Segunda, 25 de maio. Feriado da Revolução Constitucionalista, comemorado normalmente em 9 de julho.

 

 

O último feriado desse pequeno pacote se refere a um evento de quase 90 anosatrás, em que os paulistas se rebelaram contra o governo central e se prepararam para uma guerra, que durou poucos meses. Apesar da derrota, os símbolos do engajamento do Estado ainda são exibidos com orgulho.A campanha "ouro por São Paulo" virou um prédio lá no centro, os mártires MMDC foram homenageados com o obelisco no Ibirapuera e a data eternizou-se no nome de uma das principais avenidas da cidade, a 9 de Julho.

 

O fim do mega-feriadão

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Chego assim, ao fim dessa saga histórico-cívica-religiosa.

 

Espero que a antecipação tenha servido para nos reduzir o contágio, apesar de achar que poderíamos apenas ter ficado em casa, sem pretexto algum. De qualquer modo, o feriado possibilitou conhecer um pouco sobre o que escolhemos celebrar e traz histórias de dezenas ou centenas de anos atrás. Uma lembrança de um ritual cristão, uma homenagem a quem lutou pela liberdade, uma celebração republicana.

 

Cada tema tem sua relevância histórica, mas hoje parece um anacronismo ter datas definidas por decreto: "Comemore-se isso!", ainda mais em tempos de tanta pluralidade. Quem sabe o que vai estar sendo comemorado daqui a dez ou cem anos? Numa sociedade com mais facetas e com mais vozes, parece estranho impor feriados religiosos e cívicos por votação nas câmaras.

 

Gostaria de imaginar as próximas gerações pudessem celebrar algo de bom que estivesse surgindo do período que estamos vivendo, quem sabe o momento em que nos unimos ao redor de uma causa. Temo, porém, que diante da inacreditável sucessão de fatos estranhos e descalabros éticos, não haverá nenhum motivo para orgulho.

 

O bom é que sempre teremos o único feriado dedicado a esquecer e não a lembrar: o Carnaval, esse sim, um marco duradouro da nossa identidade.

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