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Espaços públicos, caminhadas e urbanidade.

Caminhar, uma metáfora para 2020

Por Mauro Calliari
Atualização:
 Foto: Gabriela Aguerre

Em tempos difíceis, cada um procura suas próprias maneiras de mitigar os problemas. Há quem faça terapia, há os que fazem exercícios compulsivamente, há quem busque conselhos de outras pessoas, há os religiosos e também há quem caminhe.

 

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Todo mundo ou quase todo mundo anda a pé. Em algum momento, a gente resolve sair de casa e acaba fazendo coisas a pé, como pegar o ônibus, atravessar a rua para encontrar alguém, andar um quarteirão para comprar o pão ou apenas para dar uma volta. Às vezes, a cabeça está tão pesada que, se você não der uma voltinha a pé, estoura.

 

Pois bem, em cada uma dessas caminhadas, é possível fazer ligações com a nossa vida. A cada vez que andamos a pé, passamos por situações que podem ajudar a pensar na vida que levamos.Talvez esses pensamentos possam até ajudar a enfrentar algumas de nossas dificuldades, numa espécie de auto-ajuda peripatética. Vejamos quais são as questões que o caminhar enseja.

 

Um passo depois do outro

 

O andar pressupõe uma perda de equilíbrio a cada passo. O pé direito se apóia firmemente no chão, enquanto o esquerdo começa a se levantar. Nesse instante, tudo pode acontecer, podemos até cair ou tropeçar se mudarmos de ideia no meio. Não se arriscar não é uma opção. É preciso se arriscar para sair do lugar, recuperar o balanço e continuar assim, num balanço entre quase cair e se recuperar, num movimento contínuo.

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Será que esse movimento não pode nos remeter à noção tão necessária de balanço entre a preocupação com o presente e a esperança no futuro?

 

A cada dia, para ter força de sair da cama, concentrar a mente naquele passo, que nos leva até o outro e depois outro. Se dermos os passos de maneira distraída, podemos não chegar a lugar nenhum; com intensidade, ao contrário, nos aproximamos do que queremos e amamos.

 

Tomar decisões, deixar alguma coisa para trás e seguir em frente

 

Caminhar exige que tomemos decisões constantemente. Viramos à esquerda ou à direita? Subimos aquela escadaria para cortar caminho ou damos a volta no quarteirão para um lugar mais iluminado? Corremos quando o homenzinho começa a piscar ou esperamos na calçada e perdemos tempo?

 

Assim é no dia-a-dia. As opções se sucedem e somos obrigados a tomar dezenas, centenas de decisões num mesmo dia, sem pensar que algumas delas podem mudar nosso futuro inexoravelmente.

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É preciso nos forçar a lembrar que não é possível fazer dois caminhos. Isso pode nos acalmar diante de tantas possibilidades não realizadas, futuros que parecem tão maravilhosos justamente porque nunca terão existido. 

 

A caminhada pressupõe escolhas e as escolhas pressupõem perdas inevitáveis. Vale a pena dar uma olhada para o caminho que se está escolhendo. Seu corpo está sentindo o impulso de ir em frente? Então, melhor não pensar no que poderia ter sido e viver a vida real.

 

Saber a hora de parar

 

Quem anda a pé, em algum momento sabe que precisa dar uma parada. É preciso tomar um gole de água, sentar em um banco, ir ao banheiro, mandar uma mensagem, refazer as energias.

 

Assim também é no turbilhão cotidiano: trabalhamos, nos movemos, encontramos pessoas, pagamos conta, bebemos no bar e esperamos por diagnósticos médicos.

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De vez em quando, é essencial dar aquela paradinha, respirar, pensar no caminho feito até aqui, olhar um pouquinho para o futuro e as possibilidades que se apresentam. Como na caminhada, parar às vezes pode ser tão importante como andar.

 

Escolher um ritmo

 

Às vezes, a gente anda decidido até algum lugar, os pés velozes e a cabeça concentrada. É preciso chegar logo ao compromisso, à prova, ao trabalho.

 

Outras vezes, a cabeça está tão leve quanto os pés. Sabemos que vamos encontrar gente legal, ver algo bonito. O corpo todo parece querer se mover naquela direção e o olhar vagueia com interesse pela calçada. Observamos detalhes que nem sabíamos que estavam ali: um cachorro latindo, uma bomba de chocolate na vitrine, uma bananeira, uma criança com uma camisa oficial de um time de outro país.

 

Outras vezes ainda, parece que o corpo não quer sair do lugar para nada, muito menos para ir pegar o metrô até o trabalho num dia de chuva. Andamos quase parando, torcendo para que aconteça algo que nos dê a desculpa para desistir.

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A cada ano, somos instigados a escolher um ritmo. Muitas vezes, é o ritmo de uma maratona. É a mãe que trabalha e cuida dos filhos; é o estudante que sabe que vai precisar ralar durante o ano para o vestibular; é a faxineira que precisa ir de casa em casa sem parar; é o ritmo do trabalho, da realização, do estudo, de atingir metas, pagar contas.

 

Parece difícil, mas, quem sabe, às vezes, é possível aproveitar um pouco mais o caminho, olhar para o lado, abrir-se para um convite inesperado, uma música nova que alguém compartilhou, um café quente numa hora difícil. Nessas horas, o corpo se alonga, a respiração fica mais leve e a maratona que vem a seguir fica menos penosa. Saber a hora de correr, a hora de andar, a hora de flanar.

 

 

Escolher a companhia. Ou ir em frente sozinho

 

Muitas pessoas gostam de caminhar com conhecidos. Nos finais de semana, nos parques e em vários bairros pela cidade, é comum encontrar casais, grupos de amigos, pais e filhos passeando. Eles andam, conversam, param, num ritmo coletivo em que cada um cede um pouco.

 

Também há os que preferem andar sozinhos, escolher seu ritmo e ir em frente, sem se preocupar com os horários dos outros, combinações, quem leva, quem busca.

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Vivemos a realidade hiper conectada, estamos em grupos virtuais com colegas de trabalho, amigos ou com nossos amigos virtuais que nem conhecemos. A conversa sem fim ajuda a trazer companhia, diverte e nos conecta com gente interessante. Tem vezes, porém, em que a gente precisa ficar sozinho. Dá até medo de ficar só, desligar o celular e enfrentar um problema, mas vale a pena.

 

A metáfora do caminhar se transforma num método, sair de casa, flanar, pensar. Filósofos, como Immanuel Kant ou Nietzsche, músicos como David Byrne, fotógrafos como meu amigo Mauricio e tanta gente que precisa de concentração encontraram no caminhar uma maneira de relaxar, pensar (ou não pensar), inspirar-se e ganhar força para tocar a vida. Estar só na multidão, como o poeta francês Baudelaire, é um poderoso meio de se sentir vivo.

 

O novo ou o desconhecido. Escolher o caminho

 

Tenho amigos com quem caminho às vezes. Cada um é de um jeito.

 

Tem aquele que decide um roteiro e não abre mão de chegar até lá. Se vamos ao Masp, ao Masp chegaremos. Já outro é o oposto; para ele, o objetivo é apenas uma abstração. Combinamos de ir ao Jardim da Luz mas se tiver uma feira no caminho, é a feira que importa, o pastel, a barraca do homem conserta panelas. O objetivo do passeio vai mudando até que a gente descobre que o passeio vale por ele mesmo e que o Jardim da Luz vai continuar lá e um dia talvez combinemos de ir de novo. Ou não.

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Há momentos em que a gente precisa mesmo fechar os olhos e ir em frente, atingir metas. Há outras horas, porém, que a gente pode se permitir errar de caminho, tentar um curso e largar no meio, encontrar e largar alguém. Às vezes, a gente precisa mesmo é parar na barraca do pastel, e, diante do queijo derretendo saindo pelo furinho da primeira mordida, trocar de objetivo e mudar de caminho.

 

A perda da vaidade

 

O pedestre sabe: andar é despir-se da vaidade.

Assim como os peregrinos que saem a pé para Aparecida do Norte ou a Santiago de Compostela, quando saímos à rua, estamos sozinhos, na chuva ou no sol. Quem está no carro, fecha o vidro e liga o ar condicionado. Quem está na rua, conta com o pé e a coragem. Diante dos poderosos barulhos e motores da cidade, andar a pé é uma experiência de humildade e chegamos a cair, às vezes, graças às calçadas ruins e aos obstáculos. As quedas não deixam ninguém ileso e não deveriam fazer parte do script, mas às vezes, quem anda cai. E levanta, e vai em frente.

 

A perda da vaidade é daquelas questões difíceis na sociedade contemporânea. No dia a dia, somos instados a estufar o peito e gritar para sermos ouvidos em reuniões de condomínio, ganhar likes, ser notado pelo chefe. Há um ganho evidente em ter certezas, em sentir-se poderoso, em falar como se não houvesse contradições.

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Essa necessidade do protagonismo constante ganha um poderoso contraponto no caminhar que pode trazer paz para espíritos agitados. Pensar menos, falar menos, observar mais, seguir em frente e ganhar de nós mesmos os cumprimentos ao final do caminho. Chegamos até aqui, não precisamos passar por cima de ninguém. Molhados às vezes, doloridos talvez, cansados certamente, mas teremos chegado com nossos próprios meios. Passo a passo.

 

Fotos: Gabriela Aguerre

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