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Espaços públicos, caminhadas e urbanidade.

40 anos depois, voltei a andar de bicicleta em São Paulo

Por Mauro Calliari
Atualização:

A bicicleta estreando no estacionamento da USP. Arq. Pessoal  

Até meus 17 anos, a bicicleta era um meio de transporte e um prazer. Cruzava a cidade de madrugada para ir à raia olímpica da Cidade , levava meu irmão na garupa para a aula de inglês e pedalava por aí nos finais de semana.

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Um dia, cruzando a ponte do Morumbi, um ônibus bateu na bicicleta e me jogou contra a grade, sem nem parar para ver o que aconteceu. Por sorte, não me machuquei, mas fui diminuindo o uso da bicicleta até parar.

40 anos depois, comprei outra bicicleta.

São Paulo parecia diferente. Aquele mundaréu de ciclistas nos finais de semana, o plano de uma rede de ciclovias, tudo acenava para uma vida mais segura nas duas rodas em São Paulo. Resolvi que iria usar as ciclovias para trajetos curtos e realmente tem sido ótimo poder pedalar até uma estação de metrô, deixar a bicicleta no bicicletário e pegá-la de volta horas depois.

Na sexta-feira do feriado de Páscoa, porém, a cidade ficou vazia e decidi me aventurar e pedalar pelas ruas sem carro, longe da proteção das ciclovias e ir até a casa de um amigo.

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Na volta, no meio da tarde, o céu cinza foi ficando preto até que começaram os primeiros pingos, grossos. Pensei em buscar refúgio, mas quando a chuva engrossou até virar uma tempestade, já estava decidido. Iria encarar a chuva pedalando.

Nas ruas, ninguém. Nem pedestres, nem carros, só água e eu. Cruzei o Itaim e os Jardins, pedalando tranquilo e molhado. Na Augusta, desafiei os rios que desciam da Paulista com as rodas em meio à enxurrada. Em Pinheiros, já estava falando alto comigo mesmo. Sentia apenas o prazer de estar na chuva, sem medo de carros, cruzando a cidade vazia. quarenta anos depois.

Em casa, notei que, com a chuvarada, o celular parou de funcionar e que uma nota de 20 reais grudou no RG. Consegui desgrudar o dinheiro, mas o celular parece que não vai voltar. É uma pena, mas agora já aprendi e vou andar com um saquinho de plástico para o caso de precisar encarar uma chuva na volta para casa. Se andar a pé pela cidade permite ver os detalhes, perceber as pessoas e as coisas, andar de bicicleta traz o prazer do vento no rosto e do bem-vindo exercício.

Bicicletário da estação Faria Lima lotado num dia de semana. Arquivo pessoal.  

Aumentou o número de ciclistas e de acidentes na cidade

Constato que não estou sozinho. O número de pessoas pedalando nas ruas aumentou a olhos vistos e isso deve ser comprovado na pesquisa OD, realizada pelo Metrô, que deve apresentar os resultados nesse ano. No centro expandido, está ficando mais comum ver gente indo trabalhar e estudar de bicicleta. Na Vila Olímpia, entre 8 e 9hs da manhã, tem tanta gente que há até filas em alguns cruzamentos. Já existe uma empresa de bike taxi operando. Nas periferias, há falta de vagas em bicicletários nas estações de trem.

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Infelizmente, esse aumento não está vindo sem dor. No ano passado, morreram 37 pessoas de bicicleta, 48% a mais do que em 2016 (as maiores vítimas há anos são os pedestres, mas o maior crescimento de mortes foi de ciclistas). Cada cruzamento mal feito e mal sinalizado evidencia o conflito com os mais fortes - os carros -- e cria outro com os mais fracos - os pedestres. A ciclovia mais equipada da cidade, da Faria Lima, já tem alguns buracos e a sinalização deficiente. Em dois pontos dessa ciclovia, vemos as tristes bicicletas brancas, as ghost bikes, que foram instaladas para marcar a morte de pessoas que andavam de bicicleta.

Ghost Bike na avenida Faria Lima. Arquivo Pessoal. Foto: Estadão

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Me pergunto se nossa cidade poderia voltar atrás e condenar as bicicletas a voltarem para as garagens enquanto os carros continuam a dominar as ruas. Afinal, convivemos com um traço cultural atávico, que reforça o recalque. Para algumas pessoas, parece que ver ciclistas nas ruas é uma afronta pessoal. Elas não se dão conta de que cada ciclista nas ruas pode representar um carro a menos na sua frente. Na Faria Lima, o contador de bicicletas mostra habitualmente um número acima das duas mil bicicletas por dia. São dois mil carros a menos nas ruas.

Não, acho que não há espaço para voltar atrás. Há associações de ciclistas, há associações de pedestre, mas, mais que tudo, há um espírito do tempo. Nas grandes metrópoles do mundo todo, em cidades de países ricos e pobres, o que está acontecendo é o oposto: mais e melhores ciclovias, mais espaço para as bicicletas e pedestres, mais fiscalização, muito mais educação.

O plano de mobilidade da cidade já prevê a melhoria da chamada mobilidade ativa. Para que qualquer plano aconteça, entretanto, vai ser preciso fiscalizar e cobrar a prefeitura, com a incógnita que representa a nova gestão, para que crie de fato a tal da rede de mobilidade, conecte as ciclovias para chegarem às estações, sinalize, faça manutenção e crie travessias seguras de rios e das linhas de trem.

A parte que não está no plano é o prazer de poder sair por aí andando ou pedalando sem pensar em nada, aproveitando a cidade, com sol ou chuva, com a certeza de que vai conseguir chegar em casa são e salvo.

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