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O Estranho Homem de Kennewick

Por Fernando Reinach
Atualização:

A pacata Kennewick fica na beira do Rio Columbia, na costa oeste dos EUA. Em 28 de julho de 1996, dois espectadores de uma corrida de barcos encontraram um crânio na beira do rio. Quando a polícia se certificou de que o crânio não era resultado de um crime recente, os arqueólogos entraram em ação. Logo localizaram o resto da ossada, um total de 350 fragmentos. A ossada praticamente completa pertence ao governo americano. Mas os arqueólogos não tiveram paz. Cinco tribos de índios, entre elas os Umatilla, solicitaram que o governo americano os autorizasse a enterrar os ossos, que seriam de um de seus ancestrais. O governo estava para autorizar a remoção e o enterro quando os arqueólogos protestaram. Alegaram que não havia evidências de que o Homem de Kennewick era um índio americano. Os índios acionaram a Justiça. Em 2004, um juiz decidiu que os arqueólogos tinham razão, o esqueleto poderia não ser de um ancestral das populações indígenas e deveria ser melhor estudado. Ao analisar a ossada, foi descoberto que havia um fragmento de rocha de 7,9 cm incrustado no íleo de Ken (um apelido carinhoso que inventei agora). Como o osso havia crescido em volta dessa ponta de rocha, tudo indicava que Ken havia sobrevivido ao ataque. A ponta incrustada é semelhante às pontas de lanças e flechas produzidas pela cultura Cascade, que teria habitado a região entre 7.500 e 12 mil anos atrás. Suspeitando que Ken era realmente antigo, seus ossos foram analisados usando o método do carbono 14. A conclusão é que Ken viveu entre 8.900 e 9 mil anos atrás, mais de 7 mil anos antes do nascimento de Cristo. Ken teria morrido com aproximadamente 40 anos, tinha artrite, era destro, comia peixe e tinha o braço direito ligeiramente deformado. Mas a controvérsia se deve ao formato de seu crânio e outras medidas feitas pelos antropólogos. Essas medidas mostraram que o crânio de Ken não tem características típicas dos índios americanos, mas é semelhante aos crânios da população Ainu, os seres humanos que colonizaram a Polinésia. Isso tornou Ken importante. Os cientistas acreditam que o homem chegou à América cruzando o estreito que liga a Rússia ao Alasca. Essa população original teria se espalhado pelos EUA, dando origem aos índios norte-americanos. Teria migrado para a América Central, chegando à América do Sul. Muitos antropólogos acreditam que Ken é representante de uma segunda onda migratória que teria chegado às Américas pelo mesmo caminho, mas vinda de outra região da Ásia. Foi com base nessa suposição que a Justiça americana negou aos índios o direito de enterrar Ken e permitiu aos antropólogos continuar seus estudos. Agora um grupo de geneticistas conseguiu extrair DNA dos ossos de Ken e foi possível sequenciar seu genoma. Os cientistas puderam comparar a sequência com a obtida de diversas tribos da América do Norte, Central e do Sul. Também foi possível comparar o genoma de Ken com o da população Ainu. Os resultados são surpreendentes. Do ponto de vista genético, Ken é mais parecido com os índios americanos e muito diferente das populações Ainu. O mais interessante é que seu genoma é mais parecido com os dos índios da América Central e distante dos índios da América do Norte e do Sul. No genoma de Ken foram encontradas sequências de DNA que só existem nos índios americanos. Ou seja, os dados genéticos não confirmam a ideia de que Ken seria um representante de uma segunda população que teria chegado à América. Nos próximos anos, antropólogos e geneticistas vão ter muito o que discutir, afinal não será fácil conciliar as descobertas morfológicas, que indicam que Ken não é um ancestral dos atuais índios americanos, com as descobertas genéticas, que indicam que Ken é um legítimo ancestral dos índios americanos. Mas os cientistas precisam correr, pois é provável que os índios voltem a solicitar à Justiça o direito de enterrar seu ancestral. E se a Justiça decidir a favor dos índios, os ossos vão deixar o museu da Universidade de Washington e serão enterrados. Ken vai descansar em paz e a ciência terá de achar outros esqueletos para resolver esse mistério.Mais informações: The Ancestry and Affiliations of Kennewick Man. Nature, vol. 523, pág. 455, 2015 *É biologo

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