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João XXIII e o sonho de um mundo sem guerra

Por José Oscar Beozzo
Atualização:

"Quem é esse?" Foi a pergunta perplexa na Praça de São Pedro e mundo afora, no dia 28 de outubro de 1958, quando se anunciou do balcão da Basílica: "Habemus papam", "Temos Papa": o patriarca de Veneza, Giovanni Roncalli, que tomou para si o nome de João XXIII. Nome inusitado e abandonado desde que o Concílio de Constança depusera em 1415, outro João XXIII considerado antipapa. A figura baixa, rechonchuda, paternal e bonachona contrastava com o perfil aristocrático e quase diáfano de Pio XII, que dominara o cenário da Igreja das últimas duas décadas (1939 a 1958). Suscitou comparações desfavoráveis e certo desencanto. Cinco anos depois, à sua morte (03-06-1963), o povo brasileiro chorava a partida do "Papa buono", do Papa bom, junto com a massa silenciosa em vigília na Praça São Pedro e nos quatro cantos do mundo.

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Para compreender este sentimento de afeto e tristeza conta muito o propósito, que animou seu serviço como bispo de Roma e como Papa:

"Agora, mais do que nunca, certamente mais do que nos séculos passados, pretendemos servir ao homem enquanto tal e não só aos católicos; principalmente, antes de tudo e, em qualquer lugar, aos direitos da pessoa humana e não somente aos da Igreja católica".

Delegado apostólico por mais de vinte anos em países ortodoxos como Bulgária e Grécia ou islâmicos, como a Turquia, aprendera a respeitar e amar as outras Igrejas cristãs e os muçulmanos. A Dom Helder Camara que lhe levara o convite do Presidente Juscelino, para abençoar a inauguração de Brasília e que lhe contava entusiasmado o trabalho da Cruzada Sebastião para remoção de favelas no Rio de Janeiro, oferecendo moradia digna aos favelados, advertiu João XXIII: "Se você tivesse vivido no Oriente, nunca empregaria este termo cruzada"!

O maior e mais duradouro impacto do seu pontificado foi o anúncio a 25 de janeiro de 1959 da convocação de um Concílio ecumênico para o "aggiornamento" da igreja e a busca da unidade entre os cristãos. Pediu aos bispos do mundo inteiro que expusessem com liberdade as questões que deveriam compor a sua pauta. Do Brasil, 132 dos 167 bispos responderam e abraçaram primeiro com incerteza e depois com entusiasmo, a grande aventura conciliar. Instados por João XXIII, lançaram-se a um ambicioso plano de cooperação entre leigos e padres, religiosos e religiosas de todas as dioceses e prelazias e aprovaram na V Assembleia da CNBB, em abril de 1962, o Plano de Emergência da Igreja do Brasil.

Compareceram à abertura do Concílio, a 11 de outubro de 1962, 173 bispos brasileiros. Compuseram o impressionante cortejo de mais de 2500 padres conciliares de todo o mundo, que adentrou a Basílica de São Pedro na manhã do dia 11 de outubro de 1962. Para lá, retornaram no outono dos anos seguintes, até a clausura do Concílio por Paulo VI, a 08 de dezembro de 1965.

Ouviram, ao lado de observadores de Igrejas do antigo oriente, da ortodoxia e dentre as saídas da reforma protestante, o decisivo discurso de abertura do Concílio, Gaudet Mater Ecclesia, "Alegra-se a Mãe Igreja". Iniciaram, ali, um promissor aprendizado de diálogo e cooperação ecumênicos e de contato, escuta e intercâmbio com a diversidade católica representada pelas antigas Igrejas do Oriente, as jovens igrejas da África, da Ásia, da América Latina, Caribe, Oceania e as velhas cristandades europeias. João XXIII pediu a todos, atitude confiante e positiva, sem condenações nem anátemas; urgiu uma igreja disposta a enfrentar o erro, mais com misericórdia do que com severidade; empenhada na busca da unidade dos cristãos e no serviço às necessidades de todo o gênero humano.

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No dia 21 de novembro de 1962, recebeu de maneira calorosa os bispos brasileiros presentes no Concílio. Depois dos primeiros parágrafos, abandonou o discurso preparado pelos assessores e misturou-se aos bispos, querendo saber de suas dioceses, preocupações e trabalhos.

Sua morte impediu-o de acompanhar os três períodos seguintes do Concílio, que nos legou 16 documentos: 4 constituições, 09 decretos e 03 declarações e o espírito de um novo Pentecostes.

Sua encíclica Mater et Magistra de 1961 alargara a questão social, estendendo-a do mundo operário ao dos trabalhadores do campo e ao mundo todo, onde apontou os desequilíbrios entre os países desenvolvidos e subdesenvolvidos. No Brasil, provocou intenso debate sobre a reforma agrária, tema que dividia a sociedade e também a igreja. Apoiada na palavra do Papa, a CNBB expressou seu apoio à proposta de reforma agrária do Governo Goulart. Suscitou viva reação de alguns bispos e de leigos alinhados com a defesa intransigente da propriedade no movimento "Tradição, Família e Propriedade".

Sua última encíclica, a Pacem in Terris de abril de 1963, promulgada a dois meses de sua morte, apresentou firme condenação de toda e qualquer guerra como meio de resolver conflitos entre as nações. Diante do poder devastador das armas químicas, biológicas e nucleares, o Papa abandonou a doutrina tradicional da guerra justa. Afirmou que nenhuma guerra era justificável; que constituíam um crime contra a humanidade e que pessoas, instituições e nações deviam se empenhar para estabelecer instrumentos de diálogo, de superação de situações injustas, para se construir a paz entre os povos.

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Sobre a Pacem in Terris, escreveu Alceu Amoroso Lima: " pela primeira vez na história dos documentos pontifícios, o Papa se dirige, não apenas aos bispos e aos fieis, mas a 'todos os homens de voa vontade' Nas 'Diretrizes Pastorais', com que o Santo Padre encerra esse novo grande documento de sabedoria moral e social da Igreja de Cristo, acena ele para 'colaboração dos católicos com as 'pessoas que não fé em Cristo ou têm-na de modo errôneo', caso em que se tornam esses 'encontros' não só legítimos mas benéficos, pois 'podem ser para estes ocasião ou estímulo para chegarem à verdade... Pode, por conseguinte, acontecer que encontros de ordem prática, considerados até agora inúteis para ambos os lados, sejam hoje, ou possam vir a ser amanhã, verdadeiramente frutuosos".

No Brasil, envenenado pelo acirramento ideológico que preparava o golpe militar baseado em primário anticomunismo e escassa preocupação social de suas elites, o chamamento do Papa ao diálogo e à cooperação para o bem comum levou estudantes católicos da JUC a se aliarem a partidos de esquerda nas eleições para a direção da UNE. Na inflamada situação no campo, com o surgimento das Ligas Camponesas e o pipocar da sindicalização rural apoiada pela Igreja, a Pacem in Terris abriu espaço, para que Federações estaduais de sindicatos rurais de inspiração cristã, alguns deles controlados pela AP (Ação Popular) se aliassem a Federações controladas pelos comunistas para empalmar a direção da CNTA (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura), a 20 de dezembro de 1963. A aliança provocou imediata condenação da parte de Dom Vicente Scherer em Porto Alegre e de Dom Jaime de Barros Câmara no Rio de Janeiro.

João XXIII naquele momento apontava para o futuro, enquanto muitos continuavam presos à intransigência e aos impasses da guerra fria, que no terceiro mundo era sempre quente com centenas de milhares de vítimas e destruições sem fim.

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A canonização de João XXIII representa o reconhecimento de sua santidade, mas também de um caminho de Igreja baseado no seguimento de Jesus e de um sonho de humanidade sem fome nem guerras inspirado uma fraternidade sem fronteiras, que o Papa Francisco volta a propor com vigor e destemor.

*É TEÓLOGO E HISTORIADOR. AUTOR DO LIVRO 'A IGREJA DO BRASIL NO CONCÍLIO VATICANO II' (EDIÇÕES PAULINAS)

 

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