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Índios guarani resistem a despejo no Jaraguá

Em março, Justiça Federal determinou que os indígenas saíssem do terreno que, apesar de ser reconhecido pela Funai, ainda não foi demarcado; Após recurso, o STF é quem deve definir se a reintegração deve ser suspensa

Por Raquel Brandão
Atualização:

Depois de nove meses de plantio, Ari Augusto Martim, cacique das aldeias guarani no Jaraguá, colhe as primeiras batatas-doces. Também plantou milho, cana-de-açúcar, amendoim e mandioca. “É tradição guarani. Quando chego em um lugar, a primeira coisa que faço é cuidar da terra.” O restante da colheita, no entanto, pode depender da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que decidirá se a reintegração de posse da Gleba do Jaraguá deve ser anulada ou não. A expectativa é de que o parecer seja conhecido ainda nesta semana, segundo o assessor jurídico dos guaranis, Bruno Morais.

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Em março deste ano, a Justiça Federal determinou a reintegração imediata do terreno, chamado pelos indígenas de Tekoa Itakupe - em guarani, Itakupe significa por trás da pedra, em referência ao local, que fica nas costas do Pico do Jaraguá. A determinação veio depois de um agravo solicitado pelo advogado Antônio Tito Costa, que foi deputado federal e prefeito de São Bernardo entre 1970 e 1990. A disputa pelo território está na Justiça desde 2005, quando os indígenas ocuparam pela primeira vez o espaço. “Nós ficamos seis meses aqui, mas naquela época não tínhamos apoio”, explica o cacique.

Cerca de dois anos depois, Ari foi à Brasília para uma reunião com representantes da Funai. Em 24 de abril de 2013, o despacho nº 544 da então presidente da Funai, Marta Maria do Amaral Azevedo, delimitou a Terra Indígena (TI) do Jaraguá: um território de 532 hectares que se expande pela aldeia Tekoa Ytu, já demarcada, por sítios da região, incluindo o terreno reclamado por Tito Costa e, também, por uma área do Parque Estadual do Jaraguá.

Enquanto os índios dizem que sempre utilizaram a terra e que “nunca viram branco ali”, Antônio Tito Costa alega que lá nunca houve presença indígena. A área de 72 hectares teria sido adquirida pela família de sua falecida esposa e um sócio, em 1947. “Nossa área nunca foi habitada por índios. A Constituição diz que são terras indígenas aquelas que são habitualmente ocupadas por índios e que nelas produzem. Está inteiramente fora dos critérios da Constituição. Esse laudo da Funai é só um laudo antropológico.”

De acordo com os guaranis, Costa pretende construir um condomínio de luxo no local, o que ele nega. “Ali é uma Zepam [Zona Especial de Proteção Ambiental]. Não podemos construir nada, a não ser, eventualmente, casas populares. Mas queremos manter as terras com as plantações”, diz Costa, que afirma ter plantado milho, árvores frutíferas e eucaliptos no terreno antes da segunda ocupação permanente dos indígenas, em meados em 2014. A região do Jaraguá é uma das poucas áreas urbanas com porções de Mata Atlântica remanescente.

Na Justiça. A ação judicial movida por Costa em 2005 ainda deve ser sentenciada. Desde essa época, os indígenas já sofreram uma reintegração de posse. Agora, eles aguardam apreensivos pela próxima reintegração. Na última quarta-feira, 22, a Polícia Militar organizou um encontro entre lideranças indígenas e Costa. A data da reintegração ainda está em aberto, mas já está marcada mais uma reunião em 5 de maio.

No entanto, a solicitação de Costa pode não ser atendida. Na última quinta-feira, 23, a Funai recorreu ao STF a fim de evitar a reintegração. Um despacho do Supremo solicitou que o Ministério Público Federal (MPF) se manifeste sobre o caso. Em outra ocasião, em dezembro de 2014, o MPF considerou que o cumprimento da medida liminar poderia causar danos irreversíveis à comunidade guarani de Itakupe. 

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Agora, os indígenas depositam as esperanças na decisão do presidente do STF, Ricardo Lewandowski. “De alguma forma ou outra estamos tentando mostrar para ele a realidade da nossa aldeia. A gente está muito confiante que Nhanderú [divindade guarani] vai iluminar a cabeça dele. Porque não é possível que pela caneta de um homem tantos guaranis vão viver sem terra e sem água”, diz David Martim.

O histórico de decisões de Lewandowski é favorável à suspensão da medida. Em 20 de março de 2015, o presidente do STF suspendeu decisão que determinava a retirada de povos indígenas de uma fazenda no município de Coronel Sapucaia, em Mato Grosso do Sul, destacando que seria “temerário permitir a retirada forçada dos indígenas, concedendo a reintegração da posse aos não índios, por meio de decisão liminar”.

No dia 30 de abril de 2013, a Funai publicou no Diário Oficial da União a delimitação da Terra Indígena do Jaraguá. Neste relatório, o território indígena passa de 1,7 hectare para 532 hectares. Foto: Funai/ Reprodução

 

A menor aldeia do Brasil. Segundo a Funai, 600 indígenas vivem na TI Jaraguá, sendo 42,6% de crianças de até 10 anos. É nessa região que está a menor terra indígena já demarcada no País, a aldeia Tekoa Ytu, com 1,7 hectare. Sua demarcação foi feita em 1987, antes da atual Constituição, que promoveu mudanças nas demarcações de territórios tradicionais. 

A extrema restrição de terreno é determinante para os indígenas, que vivem da agricultura, e é o que mais os motiva a lutar pela demarcação do território tradicional. “É uma terra muito pequena e que não é apropriada para se manter a tradição guarani. Toda nossa história é por meio do alimento sagrado”, explica Karai Popygua, nome guarani de David Martim, morador e professor na aldeia. Hoje, além de não terem espaço para plantar, os guaranis enfrentam a superlotação e condições precárias, como falta de tratamento de esgoto e excesso de cães, que constantemente são abandonados no local. 

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Apesar das atuais famílias guaranis terem se estabelecido na TI Jaraguá em 1950, segundo o relatório da Funai, a documentação história indica que o terreno é composto por terras vinculadas ao antigo aldeamento de Barueri, do século 17, o que tornaria o terreno tradicionalmente indígena. Essa também foi a análise da pericia isenta solicitada pela Justiça na ação. De acordo com resposta enviada pela Funai à reportagem do Estadão, “a perícia judicial atesta as conclusões da Funai de que a área em litígio é de ocupação tradicional Guarani”.

Além da Tekoa Ytu, desde a década de 1990, os guaranis ocupam 3 hectares na Tekoa Pyau - sob litígio - que fica ao lado e que antes dedicavam apenas à plantação.

Demarcações no Brasil. Apesar da TI Jaraguá ser considerada território tradicional pela Funai desde 2013, ainda hoje não foi publicada portaria declaratória pelo Ministério da Justiça (MJ) e, por consequência, tampouco houve a homologação da Presidência da República. De acordo com o MJ, “o processo de demarcação da Terra Indígena Jaraguá foi restituído à Funai para cumprimento de diligências e retornou no dia 30 de janeiro de 2015 ao Ministério da Justiça, onde está sob análise da Consultoria Jurídica”.

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A demarcação de terras é uma das principais críticas das lideranças indígenas ao governo federal. “O poder executivo continua com a decisão política de paralisar os procedimentos de demarcação das terras indígenas, mesmo que estas estejam sem qualquer impedimento judicial e/ou administrativo para serem declaradas pelo Ministério da Justiça ou homologadas pela Presidência da República”, dizia a carta da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil entregue à diretoria do Fórum Permanente para Questões Indígenas da Organização das Nações Unidas (ONU), que aconteceu na última sexta feira, 24, em Nova York. 

Segundo a Funai, atualmente, 12 processos aguardam decisão ministerial quanto à declaração da área como voltada à posse permanente e usufruto exclusivo, nos termos do Decreto nº 1775/96. Para os indígenas, o posicionamento atual do MJ é de omissão. “O Ministério da Justiça não resolve as questões e intensifica os conflitos. Muitas lideranças indígenas estão morrendo”, afirma o guarani David Martim. 

Em fevereiro deste ano, o ministro José Eduardo Cardozo criou o Fórum para Demarcação de Terras Indígenas, com representantes indígenas, ruralistas e do Estado. Em situação de conflitos intensos, as futuras decisões na mesa de negociação da Fazenda Buriti, no Mato Grosso do Sul, devem ser modelo para demarcações de outros territórios.

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