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Filha de vítima do massacre do Carandiru recebe R$ 20 mil

Valor equivale a menos de R$ 75 por semana sem o pai; magistrado considerou que pedido de reparação só foi feito em 2014

Por Felipe Resk
Atualização:

SÃO PAULO - Fernanda Vicentina da Silva e um irmão moveram ação de danos morais contra o Estado de São Paulo pela morte do pai, um dos 111 presos executados por policiais militares no massacre do Carandiru. Na época, ela tinha 9 anos. Hoje, aos 32, quer receber R$ 132 mil por ter crescido órfão. A sentença, proferida neste mês, lhe dá razão – em parte. A Justiça decidiu que a indenização deve ser de R$ 20 mil para cada um. O valor equivale a menos de R$ 75 por semana vivida sem o pai.

Antônio Quirino da Silva foi morto aos 29 anos, trancado no Pavilhão 9, com cinco tiros: um na cabeça e quatro no tórax. Era outubro de 1992. Antes do assassinato do pai, Fernanda e outros quatro irmãos já haviam sido abandonados pela mãe, que trocou a casa pelas ruas e se tornou dependente química. “O dinheiro não vai trazer meu pai de volta, mas só Deus sabe minha situação”, afirma.

Tristeza. Com quatro filhos, Fernanda acredita que, se o pai fosse vivo, seria diferente. ‘Ele ia me dar força para caminhar’ Foto: TIAGO QUEIROZ|ESTADÃO

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A situação de Fernanda inclui quatro filhos – o mais velho de 16 anos e a mais nova de 4 meses – e a falta de trabalho desde que a perua que usava para recolher material reciclável foi apreendida no ano passado. Inclui também o aluguel de R$ 400 para morar na casa de um cômodo, em Diadema, na Grande São Paulo, que compromete mais da metade do orçamento da família. O fogão, o armário e a cama de casal são de doação. Assim como as caixas de leite em pó do bebê, que ela empilha ao lado do banheiro.

Fernanda acredita que, se o pai fosse vivo, seria diferente. “Ele ia me dar força para caminhar. Quando estou passando dificuldade, não tenho pai nem mãe. É dobrar o joelho no chão e conversar com Deus.” Ela também afirma não saber a razão de ele ter sido preso. “Mas se não tivesse sido morto, ia ver os filhos e os netos, todos grandes. Não ia estar na vida do crime.”

Responsável por defender o Estado, a Procuradoria-Geral de São Paulo (PGE) tem outra visão. No processo, afirmou que “o falecido, enquanto criminoso e preso, já não tinha laços familiares com os filhos, tanto que a mãe dos mesmos o abandonou”. Procurada para comentar o caso, a PGE disse não ter sido notificada da sentença.

Fernanda fala que ia visitar Silva no Carandiru e ganhava petecas de pano e bonecas de madeira que ele mesmo confeccionava. “Eu fui ver meu pai no dia do massacre. Disseram que não podia entrar por causa da rebelião. As famílias ficaram do lado de fora, chorando sem saber o que estava acontecendo.”

Decisão. Na sentença, o juiz Rogério Aguiar Munhoz Soares, da 13.ª Vara de Fazenda Pública, diz que é um dever legal do Estado garantir a segurança dos presos e “o comando policial, no dia dos fatos, empenhou verdadeira chacina”.

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O advogado de Fernanda, Carlos Alexandre Klomfahs, contudo, afirma que vai recorrer do valor da indenização. “Foram 23 anos sem o pai. Ficou muito aquém da média de outros processos do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) e do que foi pedido.”

Um levantamento do Núcleo de Estudos sobre o Crime e a Pena, do Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV), feito com base em 73 pedidos de danos morais e materiais, mostra que as indenizações para familiares de presos variaram, na maioria, entre 100 e 200 salários mínimos (R$ 88 mil e R$ 176 mil, nos valores atuais). A maior delas, porém, foi concedida a um carcereiro que alegou ter sofrido trauma por testemunhar o massacre: R$ 576 mil.

Para calcular o valor, o magistrado também levou em consideração que o pedido de reparação só foi feito em 2014. “Ou seja, já se passaram mais de duas décadas do evento dos fatos e somente agora a demanda é ajuizada.” Fernanda diz que não sabia que tinha direito à indenização. “Eu vi na TV que alguns familiares de mortos do Carandiru estavam recebendo.”

Com o dinheiro do processo, ela queria comprar uma casa para a família. “Mas não vou achar nem barraco na favela”, diz. Na atual, a única foto exposta nas paredes marcadas por infiltrações é a de um filho de 4 anos. Sem vaga na escola pública, o menino passa a maior parte do tempo na frente da TV. Na maioria das vezes, assiste a um documentário da Rota, o batalhão da PM com maior índice de letalidade. É lá que quer trabalhar.

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Para lembrar. Em 2 de outubro de 1992, homens da Tropa de Choque e da Ronda Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), da Polícia Militar paulista, receberam a autorização para entrar no Pavilhão 9 da Casa de Detenção do Carandiru com o objetivo de encerrar uma rebelião. De lá, horas mais tarde, foram retirados 111 corpos de detentos mortos pelo massacre das forças de segurança. 

A chacina ficou marcada como a mais letal intervenção policial já feita em uma unidade prisional por servidores do Estado. O comandante do policiamento metropolitano na época, coronel Ubiratan Guimarães, chegou a ser condenado pela Justiça em 2001, mas acabou absolvido das acusações em instâncias superiores.

Em 2013 e 2014, em um dos mais longos julgamentos da história da Justiça brasileira, 73 policiais militares foram condenados em 1.ª instância pelo massacre, com penas de até 654 anos.

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