Espécie invasora, javali é opção abundante e grátis na ceia de Natal

Animal invasor que se espalhou pelo País é o único que tem a caça autorizada no Brasil justamente para tentar conter o problema

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Por Giovana Girardi , Gabriela Biló e enviadas especiais a Barretos (SP)
Atualização:
Região que vai de Paraíso a Colômbia, no norte de São Paulo, foi apelidada de 'Javalistão paulista' Foto: Gabriela Biló/Estadão

“Papai Noel, papai Noel!”, comemorava o rapaz na motocicleta enquanto andava pela estradinha de terra na região de Barretos, a 420 km de São Paulo, equilibrando na sua frente dois cachorros perdigueiros e na garupa, um javali. O animal invasor que se espalhou pelo País – e é o único que tem a caça autorizada no Brasil justamente para tentar conter o problema – vai fazer a ceia de Natal de muita família pelo interior neste ano.

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O que por um lado é um drama agrícola e ambiental de dimensões inéditas para uma espécie invasora – o bicho já foi registrado em 563 municípios brasileiros e em 11 Estados, mais o Distrito Federal, além de estar presente em 45 unidades de conservação –, por outro virou a diversão de muita gente que se ressentia da proibição geral da caça esportiva no País.

“Caça sempre foi tradição na minha família. Desde o meu bisavô, meu tataravô. Era capivara, veado, mas tudo escondido. Graças a Deus veio o porco. Caçar regularizado é a melhor coisa”, conta o estudante de zootecnia Luiz Fernando Gomes, que já tinha separado uma fêmea para a ceia com a família.

Acompanhando o pai nas caçadas desde que tinha 9 anos, ele chega, às vezes, a sair ao longo da semana inteira em “rodadas” – caças noturnas em que os caçadores circulam por dentro de plantações atrás do bicho, que se alimenta à noite – e com cachorros durante o dia, quando os porcos estão menos ativos e escondidos na mata ou no meio do canavial e só são detectados pelo faro dos perdigueiros.

A diversão, no entanto, se apressa a dizer, é só consequência de um importante trabalho de controle da praga na agricultura. “Um vizinho que planta laranja implora para eu ir lá caçar porco, mas a gente não vence. Pode caçar todo dia, o ano inteiro e a gente não consegue acabar com o bicho”, afirma Luiz Fernando, sobre uma fazenda em Colina.

Comer mesmo, eles só comem as laranjas podres que caem no chão, mas os javalis têm uma predileção por áreas úmidas para se refrescar e gostam de ficar junto ao gotejamento. “Eles estão acabando com a irrigação da fazenda porque mordem as mangueiras.”

Relatos como esses pipocam por todo lado não só no interior de São Paulo, mas em todo o centro-sul do Brasil, com suspeitas sendo investigadas no Norte e no Nordeste (veja mapa). Vai da roça de mandioca ao milharal e à criação de ovelhas que foram devastadas por varas de javalis ou de seus híbridos mais comuns, os javaporcos.Javalistão paulista. A cena descrita no início desta reportagem é de um vídeo que circulou no começo da semana passada em grupos de whatsapp de caçadores – ou controladores, como eles preferem se denominar. Só aquela equipe, o “Cãoboio da Usina”, tinha pego quatro naquela noite.

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Uma outra, liderada pelo empresário de futebol Carlos Meinberg Neto, contabilizava até o início de dezembro 300 javalis mortos desde o início do ano. Pelo feito, ele ganhou o prêmio de caçador com o maior número de abates no evento “Melhores da Caça 2016”, realizado em Uberlândia (MG) no sábado, 17.

Por esses números, a região que vai de Paraíso a Colômbia, no norte de São Paulo, foi apelidada de “Javalistão paulista” pelo agrônomo Rafael Salerno, da rede Aqui tem Javali, que organizou a premiação. A rede monitora caçadores e produtores rurais pelo País inteiro e colabora com o mapeamento da presença do bicho.

Por esse pedaço do Estado, os javaporcos se refestelaram entre plantios de cana-de-açúcar, laranja, milho, mandioca. Neste final de ano, a bola da vez é o amendoim. Dois dias antes de a reportagem chegar à região, três tinham sido abatidos numa plantação da leguminosa. É para lá que rumamos em uma “rodada” naquela noite de sexta-feira.

A bordo da carroceria vão dois caçadores armados com calibre doze e um terceiro com um cilibrim, iluminando o campo. Logo vemos o rastro do bicho. “Tá vendo esse retão mais escuro? Logo depois que o trator planta as sementes, a vara de javalis vem atrás, vai com o focinho onde passou o trator e comendo as sementes em linha”, conta Henrique Souza, um dos que portam uma arma. Mas nada de javali por ali.

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Tentamos na sequência um milharal e um seringal perto, onde vários também tinham sido abatidos em semanas anteriores. “O animal é arruaceiro”, define Anderson Moreno, o outro caçador. “Ele morde uma espiga, mas não come inteira, larga e passa para outra, destruindo tudo. Quebra seringueira pequena de brincadeira. Quando ele está no chiqueiro, come um pouco e vira a tigela”, conta.

Laudo de Souza, que cuidava do cilibrim, é capaz de jurar que às vezes ocorre de um cachaço (o macho adulto de javali) destruir chiqueiro doméstico para levar as porcas embora. “Isso não é conto de caçador, não?”, perguntamos descrentes. “Que nada, ele cobre a porca e ela vai atrás”, confirmaria Luiz Fernando no dia seguinte.

Muita história sobre a maledicência do javali, mas nenhum animal, mesmo depois de rodarmos bem uns 170 km, ao longo de seis horas. Só rastro. Como dizem, tem dia da caça...

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Ali no grupo, porém, os pernis de javali para a ceia de Natal já estavam garantidos. “Tenho um lá no freezer, a família gosta, mas vou te contar que estamos até enjoados de comer tanto esse bicho”, revelou Adalberto de Souza Lima, que dirigia a caminhonete naquela noite. Teríamos mais uma tentativa na manhã seguinte, com os cães de Luiz Fernando e amigos. Desde que o problema do javali começou, também têm proliferado pelo País criações de cães de caça, que pelo cheiro localizam os animais no meio do mato. Em alguns casos, são usados os chamados cachorros de agarre, que vão para cima dos porcos, em ações que levantaram críticas de maus-tratos aos animais.

No caso que acompanhamos, eram cães de toque, que cercam o javali, mas não o atacam. Quando ele está acuado, o caçador chega para o tiro. No sábado pela manhã, dois da equipe inicialmente fizeram uma ronda de moto para localizar rastros do animal. Encontraram de um adulto e de filhotes.

Tivemos certeza que ali havia porco quando os cachorros, que até então estavam até sonolentos, foram levados ao local suspeito. De cabeças empinadas e rabos abanando, eles buscavam o cheiro no ar implorando para serem soltos da caminhonete. Em disparada, se embrenharam pelo canavial.

Pelo som dos latidos, a turma tentava deduzir por onde o javali poderia correr. Havia chance de ele sair para a estrada, o que demandaria um tiro rápido do caçador. Mas depois de algum tropel de um lado para o outro por trás da parede de cana, o javali foi cercado. Mais uma vez, pelos latidos, os caçadores perceberam o que tinha acontecido. Correndo para o meio do mato, um deles deu um tiro. Depois mais um, seguido de um guincho forte. O javali estava morto.

Estava ali uma fêmea magra e ferida. Provavelmente tinha sido atingida alguns dias. Naquelas condições, não poderia ser aproveitada para alimentação e seria descartada depois. Não havia mais sinal dos leitõezinhos.

O animal invasor que se espalhou pelo País é o único que tem a caça autorizada no Brasil justamente para tentar conter o problema Foto: Infografia/Estadão

Desculpa para caçar. Houve duas grandes ondas de invasão no Brasil a partir de 1989. Em 2013, quando a situação já tinha fugido ao controle, o Ibama publicou uma instrução normativa autorizando o “manejo de controle de espécies exóticas invasoras” a fim de tentar conter o problema. Em bom português: o abate nos Estados onde estava comprovada a presença do animal.

Para o ecólogo Felipe Pedrosa, doutorando da Unesp de Rio Claro, que investiga o problema, se não fosse isso, a situação hoje seria muito pior. A regra, porém, é muito criticada por ser burocrática e não facilitar a vida do controlador, que tem de ter licença do Exército e do Ibama, além de apresentar relatórios do que faz. E, na prática, não foi suficiente para conter o avanço, como reconhece João Pessoa Riograndense, coordenador de Autorização de Uso e Gestão de Fauna e Recursos Pesqueiros do Ibama.

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Agora está em curso um trabalho interministerial, com participação da sociedade, para a elaboração de um Plano Nacional de Prevenção, Controle e Monitoramento do Javali.

Riograndense explica que um dos temores de liberar geral a caça de javalis e javaporcos é que isso acabe servindo como uma desculpa para matar outros animais da fauna. Além disso, há suspeitas de que o animal tenha sido levado para outras regiões do País para serem soltos e, assim, haver permissão de caça nesses locais.

“A fiscalização ainda não conseguiu comprovar isso, mas ouvimos vários relatos de que caçadores estariam fomentando a distribuição desses animais para abrir a caça. Uma espécie como o javali, se ela está em ambiente ótimo, com bastante alimento e que possa se reproduzir, não teria porque dispersar mais. Mas está se espalhando muito rápido. Isso pode sim estar acontecendo”, afirma Riograndense.

O Ibama está agora investigando a suspeita de que o javali pode estar presente em Roraima. “Como ele teria chegado ali se não de modo proposital?”, questiona.

Apesar de a criação do bicho também estar proibida no Brasil, não é raro, mesmo entre os caçadores, alguém ficar com dó de um filhotinho, levar para o chiqueiro e contribuir ainda mais com o crescimento da praga.

“É um porquinho colorido, fofinho. O fazendeiro tem na mente dele que é um bicho grande fazendo estrago na propriedade dele. Aí coloca armadilha e pega meia dúzia de filhotinhos. Isso amolece o coração. Se é para fazer controle, deveria abater, mas acaba criando o bicho”, relata o pesquisador Carlos Salvador, que investiga o problema em Santa Catarina. “Na situação atual, o problema é que não estamos conseguindo controlar os fatores humanos.”