Aos 100 anos, o tempo parou na Vila Maria Zélia

Antigo espaço operário da zona leste paulistana segue um ritmo interiorano, com crianças brincando na rua e vizinhança unida

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Por Priscila Mengue
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SÃO PAULO - “Quando se entra aqui parece que se saiu de São Paulo.” O ilustrador Eduardo Baptistão, de 50 anos, trabalhou entre 1985 e 1986 ao lado da Vila Maria Zélia, na zona leste de São Paulo, mas só foi conhecer o local anos depois, ao visitar uma amiga. Ao chegar à escondida Rua dos Prazeres, se surpreendeu com o que viu: casarões e árvores antigos, crianças brincando e idosos na calçada em um local que se intitula a primeira vila operária do País. “Parecia uma cidade cenográfica”, resume.

Foto: Daniel Teixeira/ Estadão Foto:

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Naquele mesmo dia, Baptistão pediu para a amiga avisá-lo sobre imóveis para alugar na vila, que completa 100 anos no sábado. Em 1997, se mudou para a região, onde vive com a mulher Rosângela, de 51 anos, e os filhos Clara, de 14, e Pedro, de 10. Segundo o ilustrador, por crescer na Maria Zélia, seu caçula tem uma infância mais de “moleque de rua” do que ele mesmo, que cresceu em uma avenida da Mooca. “Quando eu conheci, a primeira coisa que pensei foi: aqui deve ser um lugar legal para criar filho”, relembra.

Com 29 anos, a turismóloga Elis Rubinato vive na Maria Zélia desde os 4. Ela recorda que, na infância, ouvia lendas sobre os prédios das antigas Escola de Meninos e Escola de Meninas. “Diziam que eram mal-assombrados. Sempre tinha alguém que dava um jeito de entrar, e devem fazer isso ainda”, diz.

Por ter crescido nesse ambiente, a moradora estranhava o espanto dos outros com a vila. “Para mim era natural”, diz ela, que passou a valorizar mais o local ao estudá-lo por sugestão de um professor. “Sempre achei que ia sair, mas fui ficando. Agora sei que, se isso ocorrer, nunca mais vou ter uma experiência como essa, de conhecer todos os vizinhos”, explica.

Morador da vila há 20 anos, o ilustrador Eduardo Baptistão retratou três dos prédios mais icônicos do local Foto: Eduardo Baptistão/Estadão

O jornalista Eduardo Marcos, de 46 anos, também costuma estudar a Maria Zélia, como “hobby”. Inicialmente, ele se focou na trajetória das cerca de 171 residências do local, construído pelo empresário Jorge Street para abrigar os operários de sua fábrica de tecidos. No espaço, o industrial mantinha, ainda, comércio, restaurante, açougue e igreja. “Aqui parece que o tempo passa mais devagar.”

Presídio. O que mais interessa ao jornalista são os quase dois anos em que a fábrica foi transformada em um presídio, em 1936 e 1937. Por receber muitos intelectuais, como o crítico de cinema Paulo Emílio Sales Gomes e a escritora Patrícia Galvão, a Pagu, chegou a ser chamada pelo apelido de “Universidade Maria Zélia”. Em abril de 1937, contudo, o local foi cenário do que Marcos considera o “Massacre do Carandiru da época”: quatro detentos em fuga foram assassinados. “Foi um banho de sangue, a penitenciária inteira atirou neles”, diz.

Hoje, a fábrica pertence a uma fabricante de pneus e fica separada da vila por um muro. A maioria das casas passou por algum tipo de modificação, embora ainda remeta à arquitetura original. Quatro prédios, entre eles as duas escolas, pertencem ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), que tenta vendê-los a órgãos públicos por alegar não ter recursos para restauração. Já a igreja, de São José, integra a Paróquia São José do Belém, que se comprometeu a restaurá-la parcialmente até 2019.

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Dois dos imóveis do INSS são utilizados pela companhia teatral Grupo XIX desde 2004 e pela Associação Cultural Maria Zélia, criada em 2016 e que organiza as comemorações do aniversário da vila neste mês, inclusive com a inauguração de um centro de memória com imagens e documentos antigos.

O ‘porta-voz’. Dentre os moradores, nenhum é mais conhecido que Edelcio Pereira Pinto, o Seu Dedé, de 68 anos, que se autointitula relações-públicas e zelador da vila. “Ele está sempre atento a tudo. Se vê alguma movimentação diferente, trata de descobrir na hora o que é. Ele é peça-chave da vila, não consigo imaginá-la sem ele”, opina Elis.

Somente no Estado, ele já apareceu cinco vezes – em uma delas, relatou ter parado de cortar o cabelo até que a vila fosse revitalizada. Onze anos depois, desistiu da promessa, mas permanece encantado com o local. “Tenho o privilégio de dormir no quarto em que nasci”, relata ele, cujo avô, João Grandão, trabalhou para a fábrica na época de Jorge Street. 

Orgulhoso de onde mora, seu Dedé sabe datas e nomes de cor. Na abertura da casa de memória da vila, olhou item por item atrás de um erro, mas não encontrou. Um dos momentos que mais recorda são as pescarias com o pai no Rio Tietê, que passava atrás da vila. “A única vez que vi meu pai chorar foi quando ele encontrou um peixe morto. Ele só repetia que os peixes do rio eram a marmita dos operários.”

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