A segunda batalha da Maria Antônia

Repórter do 'Estado' narra sua maratona, das 18h30 às 23h30, na Paulista sitiada

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Por Ivan Marsiglia
Atualização:

SÃO PAULO - A passeata cruzava a Estação República, por volta das 18h30, após a concentração em frente ao Theatro Municipal quando eu cheguei. Pouquíssimos manifestantes estavam mascarados como nas imagens de quebra-quebra do evento anterior e o aspecto da multidão era um tanto semelhante ao dos protestos bem-humorados que se tornaram rotina na capital paulista, como o Churrascão da Gente Diferenciada, o Mais Amor em SP, a Marcha da Maconha ou a Marcha das Vadias. Um grupo de percussão com acompanhamento de dois trombones de vara dava o ritmo da caminhada e das rimas: "Vem, vem pra rua, vem, contra o aumento", "Se a tarifa não baixar, olê-olê-olá, a cidade vai parar", "Ô, o povo acordou, o povo acordou-ôu". Milhares de pessoas. Cinco, oito mil? Rostos muito jovens, boa parte femininos, faixas, flores nas mãos, celulares registrando e postando o passeio em tempo real. Nada, até então, sugeria um tempo de violência, desordem ou destruição do patrimônio público. Um cartaz contemporizava a interrupção do trânsito, esse pesadelo paulistano por excelência: "Desculpe o transtorno: estamos mudando o País".

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Assim, às palmas e risos, o cordão tomou a Rua da Consolação (ao meu lado alguém dizia "está sossegado, não vai acontecer nada"), quando caiu na real. Em frente ao Hotel Dan, a Tropa de Choque passou sorrateira, em fila indiana, bem ao lado da multidão. Mais à frente, em linha exata com a Rua Maria Antônia - onde, em 3 de outubro de 1968, 45 anos antes, estudantes da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP enfrentaram os do Mackenzie, mostrando a sociedade dividida entre opositores e simpatizantes do regime militar - aguardava outro pelotão.

De onde eu estava, bem perto, não se ouviu pedido, ordem ou instrução prévia das autoridades. Bombas simplesmente começaram a cruzar o céu num feixe de fogo. Uma fumaça branca e irritante tomou o ar. Tiros de bala de borracha passaram a ser disparados indiscriminadamente, inclusive contra fotógrafos e jornalistas. Começou a correria e um princípio de pânico, que alguns participantes tentavam conter com gestos e gritos de "calma, sem correr, gente".

Decido cruzar a pista em direção à Praça Roosevelt (o que diria da cena o homenageado ex-presidente americano?) onde há mais espaço para se refugiar e evitar o risco de pisoteamento naquele estouro de manada, que por sorte não causou tragédia maior. Mesmo na praça quase já não havia mais espaço, as pessoas pulavam as rampas de acesso em desespero, rapazes ajudando as moças a escalar os vãos de concreto. O que se ouvia agora não era mais canto nem percussão, mas gritos, choro, tosse e xingamentos. Garrafas pet com vinagre - supostamente eficaz contra os efeitos do gás lacrimogêneo - eram passadas de mão em mão. Alguns mais revoltados já se tomavam de fúria contra os policiais.

Se a ideia da PM era evitar o vandalismo, o efeito foi oposto. Mas se era preservar o símbolo Avenida Paulista da "ocupação" pelos manifestantes, foi bem-sucedida. Só me pergunto: uma vitória para quem? A multidão desgarrou-se pelas ruas laterais, da mesma forma que os noias foram dispersos durante a operação na cracolândia. Alguns tentando fugir, outros reagrupando-se para tentar contornar o cerco e chegar à Paulista.

Descer a Avenida 9 de Julho da Revolução Constitucionalista e subir pela Rua Paim, na Bela Vista, foi o caminho mais livre. Logo adiante, às 19h45, eu subia com um pequeno grupo a Rua Frei Caneca e tudo parecia mais calmo, com as pessoas caminhando na calçada e automóveis transitando sem grande dificuldade. À altura do número 1058, quase esquina com a Matias Aires, o Choque surge do nada. Escudos à frente, uma linha de 15 soldados desce a rua. Um deles lança um punhado objetos cintilantes a menos de dois metros de mim, e chego a me perguntar, confuso, se se tratam de moedas prateadas. O estrondo das bombas de efeito moral quase me derruba no chão e também a uma senhora de cerca de 70 anos, que acabava de sair de casa. Somos nós quem a acudimos e tiramos dali. Os policiais seguem a "varredura" na rua praticamente vazia.

Sacos de lixo. O cenário no entorno do principal cartão postal da cidade já é de guerra. Ruas desertas, nenhum carro circulando, um silêncio quebrado apenas pelo estrondo de bombas dirigidas a esmo contra pequenos grupos de jovens. Na Rua Matias Aires com a Haddock Lobo, dois rapazes encapuzados jogam os sacos de lixo de um edifício no meio da rua. Poucos segundos depois, outro, também de lenço amarrado no rosto, os retira da via e devolve à lixeira. Ganha aplausos de alguns moradores nas janelas. Que tipo de manifestante prevalecerá daqui para a frente?

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Refugio-me por algumas horas num prédio a poucas quadras do metrô Consolação, de onde saio para acompanhar um amigo, jovem advogado, que feriu o tímpano com o estouro de uma bomba, ao Hospital 9 de Julho. O Choque prossegue varrendo as duas pistas da Paulista, completamente paradas, nos dois sentidos. Em seguida, libera o tráfego. Tudo parece mais calmo, mas este repórter ainda presenciaria, no coração da segunda maior metrópole da América Latina, outra cena de arbítrio. Na faixa de pedestres quase em frente à Rua Augusta, aguardamos o sinal verde e atravessamos a Paulista para tomar o metrô. No meio da travessia, um grupo de viaturas e motos da Rocam se aproxima e não se detém. Todos são obrigados a correr para chegar à calçada e tomar o metrô de volta para casa. Em segurança, dirá alguém.

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