A revitalização das lembranças da infância

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Por Crônica: Viviane Kulczynski
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Já não existe alfândega na Praça da Alfândega. Já não há praia na Rua da Praia. Já não se usa rio no nome do Guaiba (nem acento, sinal dos tempos). Mas os três - a praça, a rua e o rio - sintetizam o centro de Porto Alegre. Tanto quanto as sombras dos ipês, dos jacarandás e das paineiras, a dureza dos bancos de madeira e concreto, as pedras que desenham o chão por onde corri na infância e tropecei na chegada à adolescência. Ficaram na lembrança as marcas pontudas feitas nos joelhos durante as brincadeiras pelo lioz que marcava o traçado imperfeito da então Praça Senador Florêncio - o nome da Praça da Alfândega entre 1883 e 1979. Encantavam as esculturas imensas de Barão do Rio Branco e General Osório, que mais pareciam homens emburrados que um estadista da República Velha e um herói da Guerra do Paraguai sobre seu cavalo.O espelho d"água enchia de esperança os pequenos que, como eu, sonhavam em ali se refrescar. Eram tempos em que ficávamos flanando, esperando pelos pais, soltos, sem perigo.Os homens iam à praça sobretudo para engraxar os sapatos com senhores de fina estampa, sentados em cadeirões altos de ferro, com seus guarda-sóis e caixas de couro preto recheadas de escovas de crina de cavalo, ceras importadas e flanelas. As mulheres circulavam pelo comércio. E carregavam as crianças para as matinês do inesquecível Cine Guarany.Desde 1955, a cidade inteira (e muito mais gente) bate ponto na praça na época do florescer de suas árvores. É sinal de que a Feira do Livro vai começar (17 dias entre o fim de outubro e novembro). O evento mais tradicional da cidade (não tem Bienal do Mercosul nem festejos Farroupilha que concorram) é a céu aberto, sobre um tapete de flores roxas e amarelas. Transpira cultura, lazer e diversão.Dos prédios imponentes que cercam a praça, lembro-me deles quando ainda tinham outras finalidades. O Memorial do Estado foi um dia o Prédio dos Correios. O sensacional Santander Cultural já abrigou os bancos da Província, Nacional do Comércio, Sul-Brasileiro e Meridional. A alfândega, depois transformada em Delegacia Fiscal (1913), é desde 1978 o Museu de Arte do Rio Grande do Sul (Margs). O lindo prédio, de arquitetura eclética, saiu das pranchetas luminosas do alemão Theo Wiederspahn, o maior arquiteto da história de Porto Alegre. Mas o melhor da praça sucumbiu à degradação do centro. O comércio foi invadido por camelôs, o espelho d"água, por pivetes, e os bancos, pela prostituição. As estátuas não reluzem mais. Os engraxates estão em outras bandas. O porto, à beira-lago, com uma rua na praia, alegre, é coisa do passado. Que venha a revitalização.PORTO-ALEGRENSE, É EDITORA DO "ESTADO"

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