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Antonio Costa da Veiga (1922-2014)

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Por Edison Veiga
Atualização:

Obituário afetivo um tanto tardio de meu avô; porque a saudade também é prato que se come frio

 Foto: Mariana Veiga/ Arquivo Pessoal

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- Vovô, que que cê tá fazendo aí?

- Escutando o barulho do silêncio. Ó que gostoso!

Eu devia ter uns 8 anos quando descobri que meu avô era um poeta. Não desses poetas que abarrotam o mundo de livros, inventam rimas a mais não poder e enchem nosso vocabulário de neologismos, hipérboles e lítotes, anadiploses, zeugmas, sonhos, felicidades, paixões, definições. Meu avô era um poeta lato sensu, desses que nunca cometem um verso sequer na vida mas semeiam belezas e sabedorias por aqui, por ali, acolá - sem critério nem obrigação.

Antonio Costa da Veiga tinha quase 92 anos quando morreu em algum dia entre as mortes de João Ubaldo Ribeiro, Rubem Alves e Ariano Suassuna. Sei que jamais conseguirei guardar a data exata, porque para mim foi um grande e infinito e triste dia todos os que existiram entre o momento em que tive a certeza de que ele não voltaria a se levantar daquela cama e a noite de sua morte, ocorrida, decretada e oficializada.

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Passaram-se alguns meses. E a dificuldade deste texto, teimoso a não sair. Entendi que a saudade é que nem dizem da vingança: prato que precisa esfriar para poder ser saboreado. Porque senão fica impossível. Porque senão o texto fica atrapalhado pelo luto, essa sombra que ofusca a beleza da vida que foi.

Vovô Antonio não era desses que pediam exagero no luto. Pelo contrário: entendia que os vivos é que importam, e a felicidade sempre é mais valiosa do que as lágrimas. Nunca o vi de mau humor - creio que às vezes devia estar, pois todos somos humanos, mas escondia muito bem. Nunca o vi reclamando. Sempre parecia leve, do tipo que não colecionava problemas.

Era de sua oficina, ali no fundo do quintal "do rancho", como ele chamava a sua casa em Taquarituba, que saíam as mais bonitas obras de arte. Da marcenaria. Que ele aprendeu intuitivamente, e na qual trabalhava, com afinco e por prazer, até poucas semanas antes de morrer. Ali, meu avô era um mágico. Transformava pedaços de madeira, por vezes restos de caixotes, em baús, cadeiras, cabos de faca e de vassoura, banquetas. Isso sem falar nos brinquedos que fizeram alegria dos netos - tenho até hoje um caminhão verde, com carreta e tudo, feito pelo Vovô Antonio.

Mas dizia aqui cabos de faca e de vassoura? Pois não é que o velho também fazia a lâmina da faca? E a vassoura toda, desde o plantio até a confecção. E peneira de bambu e taça de casca de coco e horta e vara de pescar e cabo de panela e cerca e tantas outras coisas que, desconfio, meu avô era mesmo um fazedor de coisas. Um mágico que tinha o dom de transformar isto naquilo. De conferir uso ao abandonado. De fabricar um sorriso no filho com as facas amoladas, no neto com o baú de madeira, no bisneto com o carrinho novo.

Tudo isso em paz. Nunca ouvi uma alteração na voz de meu avô. Talvez seja por isso que ele levasse tanto jeito para a agricultura; vai ver as plantinhas, serenas, se incomodam com aqueles que falam alto.

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No fundo, é isso. Os quase 92 anos de Antonio Costa da Veiga foram costurados pelo silêncio. No silêncio que ele, poeta, ouvia. No silêncio que ele usava para entender o sentimento de cada pedaço de madeira - como se a ripa escolhesse virar brinquedo ou cabo de vassoura. No silêncio que era trilha sonora do regar da horta. No silêncio dele deitado naquele velho banco no quintal de seu rancho - e agora silêncio faço eu quando passo por ali e sei que ele não mais estará.

Vejo aqui na minha frente o chapéu que ele usava para ir à missa, todo elegante, com roupa de domingo. Se eu usasse um, certamente tiraria neste momento - homenagem, deferência, agradecimento.

Como não uso, repito aqui o discurso de meu avô: fico em silêncio.

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