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Espaços públicos, caminhadas e urbanidade.

Amilton, o pedestre. A saga quase verdadeira de quem anda a pé em São Paulo.

Por Mauro Calliari
Atualização:

Pintura de C.Sidotti. Galeria Jacques Ardies. Foto: Estadão

Amilton sai cedo de casa, como todas as manhãs, em direção à padaria mais próxima, no alto de uma pequena ladeira, duas esquinas adiante.

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Ele escala com cuidado os degraus formados pelas entradas das garagens das casas, desvia de um cocô de cachorro que algum vizinho descuidado deixou e passa pela banca, que ocupa quase toda a largura da calçada, onde compra um jornal e um Hall´s, extra-forte.

Enquanto espera o troco, tem que dar passagem para uma mulher com um carrinho de bebê, que vem se esgueirando entre os displays de revistas, pilhas alcalinas, balas e recargas de celular. "Bom dia", diz ele, educado. "Belo menininho". A mulher olha para ele com alguma irritação: - "é uma menina". Desenxabido, sai logo em direção à padaria.

O momento tão esperado, de ler o jornal enquanto sente o cheiro do pão na chapa, perde importância quando descobre que não havia, afinal, desviado da sujeira de cachorro que aquele vizinho descuidado esquecera de limpar. Na saída, já atrasado, decide dar uma apressada no passo até o ponto de ônibus.

Ao tentar atravessar a última rua, vê-se frente a frente com uma moto que, decidiu fazer a conversão num local proibido, ignorando os pedestres que atravessavam a faixa. O reflexo o faz frear bruscamente, o que causa uma dor aguda no seu joelho direito recém operado. "Na sua idade, jogar futebol, tsc, tsc", havia sido o comentário da sua mulher.

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Arfando e assustado, vê o ônibus saindo do ponto.

Numa tentativa de não perder a hora, ele dá uma última arrancada, desvia de um poste, abaixa a cabeça para não bater na placa "proibido estacionar" e, quando está quase alcançando o ônibus, pisa em falso num buraco da calçada, que está bem em frente a uma loja de artigos chineses.

Enquanto tenta recuperar o fôlego e a dignidade, lembra que uma vez, há meses, tentou alertar o dono da loja sobre o buraco, mas ele falava tão mal o português que ignorou seu alerta de que a "lei obrigava o dono a cuidar da calçada".

Com o sapato sujo, o pé torcido, o terno amarfanhado e a moral baixa, chega atrasado ao escritório e descobre que a sua empresa decidiu fazer um "downsizing". Passa o dia pensando que seu nome poderia estar na lista...

 


Amilton não existe de verdade, mas seus problemas sim.

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A manutenção e o desenho das calçadas dependen de moradores e de fiscalização que não acontece.

Os buracos, as placas e os fios dependem da integração de órgãos e empresas que não se integram.

Alguns pontos de ônibus têm mais área para publicidade do que para os bancos.

As quedas em calçadas são uma das maiores causas de ocorrências de internações em hospitais de ortopedia.

A largura das calçadas é uma herança de tempos e loteamentos passados que só pode ser mudada quando o espaço para os carros não for uma religião.

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A sobrevivência das pessoas entre motos e carros depende da educação de seus motoristas, que reclamam quando tomam multas de velocidade mas acham indigno parar na faixa para um pedestre.

A convivência no espaço público depende de um aprendizado e nós ainda estamos no maternal da urbanidade.

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