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Histórias de São Paulo

Uma rua e seu marco

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Por Pablo Pereira
Atualização:

As ruas de uma cidade costumam revelar partes da história de um povo. Em muitos casos extrapolam os acontecimentos ali vividos e se transformam em ícones de um tempo. Outro dia, andando a pé pelos Jardins, passei por um ponto de São Paulo que há 40 anos é muito comentado: duas quadras da Alameda Casa Branca, distantes algumas centenas de metros do Parque Trianon e do Masp. O local, que nos anos 60 passava por forte alteração na paisagem, com a construção de vários prédios no lugar do casario de sobradinhos, foi palco de um fato que mudou a vida política brasileira: a morte do militante comunista Carlos Marighella, líder da Ação Libertadora Nacional (ALN).

O cerco policial a Marighella ocorreu entre a Alameda Lorena e a Rua José Maria Lisboa, tendo no meio a pequena Tatuí. Recentemente uma polêmica envolveu o bairro quando se decidiu colocar ali um marco do acontecimento. Há hoje na calçada, à sombra de uma pequena árvore, uma discreta lembrança, que exige esforço do observador para descobrir do que se trata.

 

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 De qualquer forma, a Casa Branca, local escolhido pelo líder esquerdista para um encontro com frades dominicanos e no qual caiu numa armadilha policial, ainda vai continuar a atrair a curiosidade cada vez que alguém comentar a história política brasileira.

Os fatos que ali se desenrolaram foram tão relevantes para o país que muitos historiadores já se debruçaram longamente sobre aqueles rápidos minutos da noite do dia 4 de novembro de 1969 em busca dos detalhes e de cada momento da operação. Há outros pesquisadores estudando as minúcias da ação policial que colocou fim na trajetória de um dos principais líderes da esquerda radical brasileira.

 O ex-integrante do antigo PCB tinha rachado com a direção do partido, criado a ALN e, após uma viagem a Cuba, se decidido pelo caminho da luta armada pelo poder no Brasil, batendo de frente com os militares que governavam com mão-de-ferro. Naqueles dias, o principal ato de força da ditadura, o AI-5, não tinha ainda um ano -- o aniversário da escuridão, aliás, é domingo, dia 13.

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Num dos seus livros sobre o período, A Ditadura Escancarada, o jornalista Elio Gaspari trata do caso da Casa Branca e compara o episódio Marighella a outras duas mortes históricas: a de Getúlio Vargas, no Rio, em agosto de 1954, e a de Tancredo Neves, em abril de 1985, em São Paulo.

Dizem também documentos do Arquivo do Estado de São Paulo, localizado na Avenida Cruzeiro do Sul, na Zona Norte, onde repousam centenas de pastas sobre o que foi o trabalho do DOPS, famigerado cérebro da repressão brasileira em São Paulo, que muito ainda há por ser lido a respeito daquele dia e daquele lugar.

A Casa Branca esteve fortemente ligada ao que veio a ser o projeto da luta armada no país e ao que seria o futuro da resistência à ditadura nos anos seguintes ao assassinato de Marighella. O local foi escolhido por Marighella, imaginam historiadores, por ser uma região de poder aquisitivo elevado e, portanto, menos visada pela polícia. Em outros documentos do DOPS há referências também a ruas da Vila Mariana como palco de encontros clandestinos dos então perseguidos que viviam protegidos pelo anonimato da grande cidade.

Do outro lado, a Casa Branca esteve ligada também à vida funcional do grupo montado pelo chefe da repressão, delegado Sérgio Paranhos Fleury, para o cerco ao baiano Carlos Marighella.

 Cinco dias após o ataque ao carro que estava estacionado na altura do número 800 da rua, um dos chefes do DOPS, Ivair Freitas Garcia, fez pedido de promoção para 12 delegados, 23 investigadores, 1 motorista, 7 guardas-civis, 1 cabo PM e 1 soldado PM. Todos largamente elogiados "pela bravura na ação".

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A versão do caso que está no documento é carregada de ufanismo, afinal tratava-se de um chefe da polícia pedindo promoção, por ordem do diretor geral do DOPS, para o grupo que havia acabado de matar um temido líder de esquerda. O aparelho de estado brasileiro havia conseguido relevante vitória contra o inimigo esquerdista, e o cônsul americano em São Paulo, pelo tamanho do evento, apressou-se a informar ao Departamento de Estado americano, como mostra o livro de Gaspari.

Em 1996, com o debate nacional sobre reconhecimento das vítimas, mortos e desaparecidos, no período da ditadura, o caso Marighella voltou a ser estudado com lupa. A família de Marighella descobriu o relatório que pedia as promoções. E nele encontrou clareza sobre um detalhe relevante do caso: Marighella não tivera tempo de reação, contrariando versão então vigente de que teria havido tiroteio. O relatório dá conta de que Marighella não disparou nem um tiro sequer.

 Outras reportagens da época ajudam a compor o quadro do que se sucedeu na famosa Casa Branca e poderão, eventualmente, servir de documento futuro para a descrição do que foi aquele cenário. No Estado do dia 5, dia seguinte ao cerco, há um relato sobre a geografia daquela parte do bairro, hoje uma agradável área residencial, mas com alguns prédios comerciais.

Conta o jornal, em sua página 14, que "partindo da Alameda Lorena, em direção à Paulista, do lado esquerdo, logo na esquina há um prédio em construção. Depois, um sobrado - por sinal desocupado. Em seguida outro prédio em construção e uma casa térrea (em frente da qual estava estacionado o Volkswagen azul onde Marighella foi morto). Ao lado dessa casa, mais um prédio em construção, mais outro em seguida e, finalmente, um prédio habitado, mas recuado da rua. Do lado direito, 5 sobradinhos. Depois, dois prédios em construção. Depois, mais duas casas."

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Eram mesmo tempos de fortes mudanças na cidade - e no país.

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